sábado, 26 de setembro de 2020

Aislane Nobre

 


 

Nasci em novembro de 1989, na ilha cercada de pedras, antes habitada pelos Tupinambás, que a batizaram como Ilha de Itaparica. Foram nessas águas que passei a minha infância e adolescência, compartilhando com os meus familiares paternos e maternos as suas memórias. Fui criada por meus pais na casa dos meus avôs paternos. Apesar de sempre estar rodeada de afeto e amor, as primeiras vivências que me fizeram entender o que era racismo se deram dentro do âmbito familiar, tendo como agravante o fato de fazermos parte de uma familia inter-racial, na qual as comparações, os apelidos e a definição dos padrões de beleza são constantes. ‘’Portanto, pode-se afirmar que, mesmo em relações com vínculos afetivos sólidos e amorosos, é possível manter e legitimar as hierarquias raciais construídas em uma sociedade racista’’ (SCHUCMAN, 2018, p.110) . 

A minha cor de pele, negra, a textura dos meus cabelos, crespos, o tipo do meu nariz, largo, atraia olhares de desprezo ou reprovação. Ao me tornar adulta pude perceber que ao sair do território familiar, rompendo o laço afetivo do cotidiano, vivenciamos, de forma ainda mais violenta, o impacto da diferença racial. Isso me inquietou e ainda me inquieta, de tal forma que ao escolher o curso de bacharelado em Artes plásticas, como caminho profissional, foi dificil dissociar a minha vivência e os meus traumas do meu fazer artístico.

Ao adentrar o mundo acadêmico, percebi que existia um mar entre nós, águas infinitas da diferença, que começam na ausência de docentes negras/os. Além disso, também era pequena a parcela dos discentes retintos. As disciplinas, pesquisas e livros não contemplavam a minha realidade enquanto mulher afro descendente, o que tornou ainda mais necessário debater sobre esse assunto nesse espaço  “não neutro’’, (KILOMBA, 2018).

Em busca da emancipação e de encontros mais profundos com as minhas raízes ancestrais, durante a graduação em Artes plásticas na Universidade Federal da Bahia realizei duas exposições individuais no Museu Afro Brasileiro da UFBA-MAFRO, ’’ Ipele Awó: a origem da cor” (2012); e Imagens da Ancestralidade em Tramas da Pele (2016). Abordei, em ambas, a origem da cor da minha pele e a origem da cor no Candomblé Nagô e Ketu. Paralelamente, prestei serviço como Arte educadora no MAFRO, por cinco anos (entre 2011 e 2016), onde pude aprofundar a minha investigação artística sobre a arte Africana e Afro brasileira. No Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, dei continuidade à minha trajetória na área museológica, aproximando o meu fazer artístico da história, da memória e da cultura afro-diaspórica, atuando no MUNCAB como assistente de museologia, entre de 2016 a 2018.

Em 2019, participei de uma exposição coletiva internacional, ‘’Circuito de Arte Negra’’ no México, da residência ‘’Fluxos - acervos do Atlântico Sul ‘’, promovida pelo Intervalo - Fórum de Arte e de diversos projetos em colaboração.

Atualmente faço mestrado em Processo de Criação Artistica pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV-UFBA), financiado pela agência CAPES. Integro o Grupo de Pesquisa Arte Híbrida, onde desenvolvo  a pesquisa em processo criativo que debate a construção social da cor de pele como marcador da racialização dos corpos negros. É voltando ao passado, rememorando a minha puerícia, a intensa ligação com meu avô paterno, Arivaldo, que ajudou a fortalecer a minha identidade e as situações de racismo cotidiano, experimentadas dentro e fora do seio familiar, que expresso a minha subjetividade artística.

Na minha pesquisa de mestrado, o objeto de investigação é a epiderme, com ênfase, metodológica, nas minhas cores de pele e nas cores da pele de dezoito familiares paternos, bem como na investigação do corpo da modelo Karine Guimarães, que apresenta um tecido epitelial com áreas despigmentadas, em razão do vitiligo. É a partir do registro fotográfico dessas cores, reunidas e classificadas no transcurso do processo de desenvolvimento do  que denomino Paleta Epidérmica Temporal (PET), que produzo as obras resultantes dessa pesquisa, combinadas com as seguintes técnicas: transferência do thonner, pinturas/tingimento, instalações e vídeoarte.

Problematizo, assim, o paradigma da cor da pele como uma cor-unidade, pressuposto que orienta a produção de artistas contemporâneos em suas múltiplas poéticas, abrindo sendas para discussões sobre o ideal da cor de pele, o apagamento social-simbólico do corpo negro na história da arte, a resistência da cor e a resistência social, o tempo e a memória.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Editorial - Marcelo Cunha

  Este número Zero materializa um desejo que não é de hoje, nem decorrente exclusivamente desse momento,   no qual estamos, compulsoriamen...