Revista do MAFRO - Africanidades
Com muita alegria e imersa no compromisso
institucional e afetivo, aceitei o honroso convite para participar do número
zero desta Revista, que faço votos que se torne um importante canal para
registros de ações que sistematizam as pesquisas e conhecimentos sobre as heranças
seculares de gerações de africanas e africanos, que aqui chegaram, traficadas
nos fétidos navios negreiros, somente com seus corpos nus, sob o julgo da
colonização-escravista e nos legaram conhecimentos e ferramentas operacionais
que nos erguem e fortalecem na contemporaneidade para o enfrentamento do
racismo em suas diversas faces, ainda presente no cotidiano.
Escrever
este pequeno relato me fez recuar no tempo 33 anos. Levou-me de volta ao ano de
1987, quando conheci o MAFRO. Naquela época trabalhava na Biblioteca Infantil Monteiro
Lobato, ainda estudante de Museologia e, com o colega Marcelo Cunha,
tivemos a oportunidade de montar uma exposição em parceria com o MAFRO e entidades
do movimento negro, como parte das comemorações da “I Semana da Consciência
Negra para Crianças” [1].
Esta experiência inicial, na sistematização de histórias e memórias
de sobreviventes do tráfico negreiro e da escravidão, junto com outras vividas
também no MAFRO me permitiram ser quem sou e estar onde estou. No MAFRO foi
possível vivenciar e consolidar compromissos com estes legados, expressos em
atos de bravura e beleza desta gente, que como bem enfatiza a ex-deputada e
ex-ministra francesa, a guianense, Christiane Taubira, da escravidão também
podemos extrair, para além da violência, a beleza das histórias e memórias que
nos permitiram chegar onde estamos: “Uma história de violência e beleza. A
beleza pode vencer.” (TAUBIRA, 2017, p. 12).[2] Entre
1995 e 1997 tive a oportunidade de vivenciar uma experiência mais longa no
museu, atuando como consultora no projeto da primeira reestruturação
expográfica. Trabalhei na proposta de uma Sala da Herança Afro-Brasileira,
pensada para incluir temas relativos às organizações de resistência, construção
e afirmação de identidade. No entanto, devido à perda de espaços físicos, não
foi possível a sua realização.[3]
Depois
destes dois momentos pontuais, em 2002, ao ser aprovada como docente do curso
de Museologia, passei imediatamente a atuar como pesquisadora, articulando
docência, pesquisa e extensão, ao novo
projeto “Ações Afirmativas Museológicas”, que contava com: “[...] a participação de
professores e estudantes de Museologia/ UFBA e outras áreas relacionadas no
desenvolvimento de atividades que dão prioridade à formação dos alunos para a
compreensão das coleções que representam as dinâmicas culturais
afrodiaspóricas, ou seja, coleções que compõem o patrimônio cultural
afrodescendente, diretamente relacionado com as lutas pela liberdade.”
(FREITAS, 2013, p. 117) [4].
Reflexões
e resultados (parciais e/ou finais) sobre os processos de pesquisa realizados
nos subprojetos foram apresentados em congressos e publicados em periódicos
nacionais e internacionais[5]. Em 2005 participei do projeto institucional de pesquisa,
educação e extensão para produção de cartilhas, partir de estudos do acervo. O
projeto trabalhou com a formação de jovens monitores de museus. [6] Em
2010, respondendo a uma demanda comunitária, o subprojeto (pesquisa e
extensão): “Memórias de Mãe Nilzete de Iemanjá e do Terreiro de Oxumaré: a fala
dos mais velhos”, foi desenvolvido com bolsistas de Iniciação Científica, como
uma atividade preparatória para as comemorações dos 21 anos de falecimento de
Mãe Nilzete, no ano seguinte. Foram realizadas ações de conservação preventiva,
em parceria com a profª Graça Teixeira, que resultaram numa cartilha entregue
ao Terreiro, com o relatório contendo a organização do acervo documental, com
os registros em áudios e transcrições das falas das pessoas mais velhas.[7]
Do
processo de estudo da coleção
Capoeira, iniciado em 2002, duas outras fases foram vivenciadas, entre
2011-2012 e 2013-2015, apresentando as primeiras reflexões em eventos
acadêmicos, que estimularam publicações.[8] O projeto foi concluído em
2015, com a entrega do projeto expositivo, realizado com as equipes de
bolsistas e com a publicação do livro catálogo: “Uma coleção biográfica: os
Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA”[9], que teve apoio financeiro
do Edital do Fundo de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
As
ações de docência, pesquisa e extensão são fortalecidas no cotidiano vivido na
instituição, implicando em diversificadas ações, como a participação na curadoria
da exposição temporária “Exu: outras faces”, resultando na publicação das
reflexões em um artigo com Marcelo Cunha.[10] Na perspectiva de estudo
de acervo, registro o último trabalho de pesquisa, com diversas fases e
bolsistas de Iniciação Científica, em articulação com as ações de conservação
preventiva, dirigidas pela profª Graça Teixeira[11]. O estudo da coleção de
cópias em gesso, a primeira coleção do museu, com as peças inicialmente
numeradas de 01 a 12, estimulou o seu destaque na nova exposição de longa
duração, “Máfricas: as Áfricas do MAFRO”, coordenada pela profª Graça Teixeira.[12]
Ao
revisar esta relação de 33 anos com o MAFRO sinto que ficou ainda mais evidente
o compromisso institucional com ações de pesquisa que têm buscado evidenciar os
estudos ancorados nas produções africanas e afrodiaspóricas. O museu se
configura, cada vez mais, como uma instituição educadora.[13] Lugar de estudos e
descobertas sobre os atos de bravura e de beleza de povos africanos e de suas descendências
nas Américas, frente ao tráfico e à escravidão. Um lugar que me remete à imagem
luminosa das lembranças da avó apresentadas nas últimas palavras da obra da
ex-escravizada estadunidense, Harriet Ann Jacobs: “[...] a retrospectiva não
vem totalmente sem alívio, porque com aquelas memórias sombrias chegam
lembranças ternas da minha boa avó idosa, como luz, nuvens felpudas flutuando
sobre um mar escuro e agitado.” (JACOBS, 2019, p. 270).[14]
[1] Esta
experiência, de aproximação institucional, está publicada no artigo: “Um
encontro de memórias de instituições protagonistas - ou quando uma biblioteca
infantil se encontra com um museu universitário”, no livro: GOMES, H. F.; NOVO, H. F. Informação e protagonismo social. Salvador: EDUFBA, 2017. Disponível para compra em: http://www.edufba.ufba.br/2017/10/informacao-e-protagonismo-social/
[2] TAUBIRA,
Christiane. L’esclavage raconté à ma
fille; une histoire à connaitre et à interroger. France: Philippe Rey (Points).
2015.
[3] Publicação referente a esta experiência
e detalhamento do projeto: FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no Museu
Afro-Brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente.
Repositório I SEBRAMUS. Brasília: UnB. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/index.php/1sebramus/ISebramus/paper/view/458/27
[4] Em 2013, convidada pelo IBRAM - Instituto Brasileiro de
Museus, fiz uma palestra (posteriormente publicada) no “VII Encontro
Iberamericano de Museus”, apresentando um balanço das ações por mim coordenadas na instituição. FREITAS,
J. M. Memorias afro-descendientes y la museística: algunas reflexiones. Revista
Brasileira do Caribe,
São Luís-MA, Brasil, Vol. XIV, nº27, Jul-Dez 2013, p. 117-137 Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1591/159130118006.pdf
[5] FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G.;
JESUS, P. M. de. Obras primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade: o
Carnaval de Barranquilla e o Palenque de São Basílio (Colômbia) e o Samba de
Roda do Recôncavo Baiano (Brasil). Revista
Brasileira do Caribe, v. 14, p. 501-531, 2007. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2457
FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G. O samba de roda na celebração de Nossa Senhora da Boa Morte em
Cachoeira-Bahia. Políticas Culturais em
Revista, 1 (3), p. 37 - 46, 2010. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/4761
[6] Estão online as cartilhas
referentes ao Setor África: https://issuu.com/zgegeraes/docs/material_do_estudante_africa_26569e40bad59d
/
http://livrozilla.com/doc/806512/material-do-professor---%C3%A1frica---museu-afro-brasileiro
[7] Um artigo relatando as atividades
também foi publicado. FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no museu
afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. II SEBRAMUS – Seminário Brasileiro de
Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/
[8] FREITAS, J. M.; GALAS, D. M.;
KROETZ, S. A coleção capoeira do Museu Afro-brasileiro (MAFRO/UFBA): os mestres
Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde e a documentação museológica. Revista Ventilando Acervos. Volume 1,
Número 1, 2013. Florianópolis: Museu Victor Meirelles/IBRAM/ MinC, 2013.
Disponível em: http://ventilandoacervos.museus.gov.br/wp-content/uploads/2015/10/Revista-Eletronica-Ventilando-Acervos-vol-01.pdf
FREITAS,
J. ARAÚJO FILHO, J. J.; BRITO, J. H. B. A Capoeira dos Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha
Verde no acervo do Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Revista Pontos de Interrogação, v. 3, p. 175-186, 2013.
Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/pontosdeint/article/view/1767/1187
[9] FREITAS, J. M. (Org.). Uma coleção biográfica: os Mestres
Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Salvador:
EDUFBA, 2015. Disponível para compra em: http://www.edufba.ufba.br/2015/12/uma-colecao-biografica/
[10] FREITAS, J. M.; CUNHA, M. N. B.
Reflexões sobre a exposição temporária do MAFRO/UFBA - Exu: outras faces. Revista Museologia e Patrimônio, v. 7,
p. 191-206, 2014. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/view/341/300
[11] FREITAS, J. M. Experiências de
pesquisa no museu afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e
afrodescendente. II SEBRAMUS -
Seminário Brasileiro de Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/
FREITAS,
J. M. Uma coleção-documento: estudo da coleção de cópias em gesso de arte
centro-africana do Museu Afro-Brasileiro-UFBA - primeiras notícias de pesquisa.
Cadernos de Sociomuseologia, v. 53 n. 9. Lisboa, 2017. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/5886
[12] A professora Graça Teixeira
coordenou o museu de 2011 a 2018. Informações sobre “Máfricas: as Áfricas do
MAFRO” disponíveis em: http://www.mafro.ceao.ufba.br/es/node/26
[13] Mesmo sem um setor específico de
Educação, o MAFRO sempre foi vivenciado como um museu “pedagógico”. A
dissertação de Daniela Moreira, por mim orientada, no Programa de Pós-Graduação
em Museologia, discute este tema. MOREIRA, Daniela. Museu e educação: uma experiência no Museu Afro-brasileiro da
Universidade Federal da Bahia. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/22615/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20DANIELA%20MOREIRA2.pdf
[14] JACOBBS, Harriet Ann (1813-1897). Incidentes na vida de uma menina escrava:
escrito por ela mesma. Trad. de Ana Ban. São Paulo: Todavia, 2019.
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