sábado, 26 de setembro de 2020

Joseania Miranda Freitas

Revista do MAFRO - Africanidades

Com muita alegria e imersa no compromisso institucional e afetivo, aceitei o honroso convite para participar do número zero desta Revista, que faço votos que se torne um importante canal para registros de ações que sistematizam as pesquisas e conhecimentos sobre as heranças seculares de gerações de africanas e africanos, que aqui chegaram, traficadas nos fétidos navios negreiros, somente com seus corpos nus, sob o julgo da colonização-escravista e nos legaram conhecimentos e ferramentas operacionais que nos erguem e fortalecem na contemporaneidade para o enfrentamento do racismo em suas diversas faces, ainda presente no cotidiano.

Escrever este pequeno relato me fez recuar no tempo 33 anos. Levou-me de volta ao ano de 1987, quando conheci o MAFRO. Naquela época trabalhava na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, ainda estudante de Museologia e, com o colega Marcelo Cunha, tivemos a oportunidade de montar uma exposição em parceria com o MAFRO e entidades do movimento negro, como parte das comemorações da “I Semana da Consciência Negra para Crianças” [1]. Esta experiência inicial, na sistematização de histórias e memórias de sobreviventes do tráfico negreiro e da escravidão, junto com outras vividas também no MAFRO me permitiram ser quem sou e estar onde estou. No MAFRO foi possível vivenciar e consolidar compromissos com estes legados, expressos em atos de bravura e beleza desta gente, que como bem enfatiza a ex-deputada e ex-ministra francesa, a guianense, Christiane Taubira, da escravidão também podemos extrair, para além da violência, a beleza das histórias e memórias que nos permitiram chegar onde estamos: “Uma história de violência e beleza. A beleza pode vencer.” (TAUBIRA, 2017, p. 12).[2] Entre 1995 e 1997 tive a oportunidade de vivenciar uma experiência mais longa no museu, atuando como consultora no projeto da primeira reestruturação expográfica. Trabalhei na proposta de uma Sala da Herança Afro-Brasileira, pensada para incluir temas relativos às organizações de resistência, construção e afirmação de identidade. No entanto, devido à perda de espaços físicos, não foi possível a sua realização.[3]

Depois destes dois momentos pontuais, em 2002, ao ser aprovada como docente do curso de Museologia, passei imediatamente a atuar como pesquisadora, articulando docência, pesquisa e extensão, ao novo projeto “Ações Afirmativas Museológicas”, que contava com: “[...] a participação de professores e estudantes de Museologia/ UFBA e outras áreas relacionadas no desenvolvimento de atividades que dão prioridade à formação dos alunos para a compreensão das coleções que representam as dinâmicas culturais afrodiaspóricas, ou seja, coleções que compõem o patrimônio cultural afrodescendente, diretamente relacionado com as lutas pela liberdade.” (FREITAS, 2013, p. 117) [4].

Reflexões e resultados (parciais e/ou finais) sobre os processos de pesquisa realizados nos subprojetos foram apresentados em congressos e publicados em periódicos nacionais e internacionais[5]. Em 2005 participei do projeto institucional de pesquisa, educação e extensão para produção de cartilhas, partir de estudos do acervo. O projeto trabalhou com a formação de jovens monitores de museus. [6] Em 2010, respondendo a uma demanda comunitária, o subprojeto (pesquisa e extensão): “Memórias de Mãe Nilzete de Iemanjá e do Terreiro de Oxumaré: a fala dos mais velhos”, foi desenvolvido com bolsistas de Iniciação Científica, como uma atividade preparatória para as comemorações dos 21 anos de falecimento de Mãe Nilzete, no ano seguinte. Foram realizadas ações de conservação preventiva, em parceria com a profª Graça Teixeira, que resultaram numa cartilha entregue ao Terreiro, com o relatório contendo a organização do acervo documental, com os registros em áudios e transcrições das falas das pessoas mais velhas.[7]

Do processo de estudo da coleção Capoeira, iniciado em 2002, duas outras fases foram vivenciadas, entre 2011-2012 e 2013-2015, apresentando as primeiras reflexões em eventos acadêmicos, que estimularam publicações.[8] O projeto foi concluído em 2015, com a entrega do projeto expositivo, realizado com as equipes de bolsistas e com a publicação do livro catálogo: “Uma coleção biográfica: os Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA”[9], que teve apoio financeiro do Edital do Fundo de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

As ações de docência, pesquisa e extensão são fortalecidas no cotidiano vivido na instituição, implicando em diversificadas ações, como a participação na curadoria da exposição temporária “Exu: outras faces”, resultando na publicação das reflexões em um artigo com Marcelo Cunha.[10] Na perspectiva de estudo de acervo, registro o último trabalho de pesquisa, com diversas fases e bolsistas de Iniciação Científica, em articulação com as ações de conservação preventiva, dirigidas pela profª Graça Teixeira[11]. O estudo da coleção de cópias em gesso, a primeira coleção do museu, com as peças inicialmente numeradas de 01 a 12, estimulou o seu destaque na nova exposição de longa duração, “Máfricas: as Áfricas do MAFRO”, coordenada pela profª Graça Teixeira.[12]

Ao revisar esta relação de 33 anos com o MAFRO sinto que ficou ainda mais evidente o compromisso institucional com ações de pesquisa que têm buscado evidenciar os estudos ancorados nas produções africanas e afrodiaspóricas. O museu se configura, cada vez mais, como uma instituição educadora.[13] Lugar de estudos e descobertas sobre os atos de bravura e de beleza de povos africanos e de suas descendências nas Américas, frente ao tráfico e à escravidão. Um lugar que me remete à imagem luminosa das lembranças da avó apresentadas nas últimas palavras da obra da ex-escravizada estadunidense, Harriet Ann Jacobs: “[...] a retrospectiva não vem totalmente sem alívio, porque com aquelas memórias sombrias chegam lembranças ternas da minha boa avó idosa, como luz, nuvens felpudas flutuando sobre um mar escuro e agitado.” (JACOBS, 2019, p. 270).[14]

[1] Esta experiência, de aproximação institucional, está publicada no artigo: “Um encontro de memórias de instituições protagonistas - ou quando uma biblioteca infantil se encontra com um museu universitário”, no livro: GOMES, H. F.; NOVO, H. F. Informação e protagonismo social.  Salvador: EDUFBA, 2017. Disponível para compra em:  http://www.edufba.ufba.br/2017/10/informacao-e-protagonismo-social/

[2] TAUBIRA, Christiane. L’esclavage raconté à ma fille; une histoire à connaitre et à interroger. France: Philippe Rey (Points). 2015.

[3] Publicação referente a esta experiência e detalhamento do projeto: FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no Museu Afro-Brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. Repositório I SEBRAMUS. Brasília: UnB. Disponível em:  http://www.sebramusrepositorio.unb.br/index.php/1sebramus/ISebramus/paper/view/458/27

[4] Em 2013, convidada pelo IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus, fiz uma palestra (posteriormente publicada) no “VII Encontro Iberamericano de Museus”, apresentando um balanço das ações por mim coordenadas na instituição. FREITAS, J. M. Memorias afro-descendientes y la museística: algunas reflexiones. Revista Brasileira do Caribe, São Luís-MA, Brasil, Vol. XIV, nº27, Jul-Dez 2013, p. 117-137 Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1591/159130118006.pdf

[5] FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G.; JESUS, P. M. de. Obras primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade: o Carnaval de Barranquilla e o Palenque de São Basílio (Colômbia) e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Brasil). Revista Brasileira do Caribe, v. 14, p. 501-531, 2007. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2457

FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G. O samba de roda na celebração de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira-Bahia. Políticas Culturais em Revista, 1 (3), p. 37 - 46, 2010. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/4761

[7] Um artigo relatando as atividades também foi publicado. FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no museu afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. II SEBRAMUS – Seminário Brasileiro de Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/

[8] FREITAS, J. M.; GALAS, D. M.; KROETZ, S. A coleção capoeira do Museu Afro-brasileiro (MAFRO/UFBA): os mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde e a documentação museológica. Revista Ventilando Acervos. Volume 1, Número 1, 2013. Florianópolis: Museu Victor Meirelles/IBRAM/ MinC, 2013. Disponível em: http://ventilandoacervos.museus.gov.br/wp-content/uploads/2015/10/Revista-Eletronica-Ventilando-Acervos-vol-01.pdf

FREITAS, J. ARAÚJO FILHO, J. J.; BRITO, J. H. B. A Capoeira dos Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no acervo do Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Revista Pontos de Interrogação, v. 3, p. 175-186, 2013. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/pontosdeint/article/view/1767/1187

[9] FREITAS, J. M. (Org.). Uma coleção biográfica: os Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Salvador: EDUFBA, 2015. Disponível para compra em: http://www.edufba.ufba.br/2015/12/uma-colecao-biografica/

[10] FREITAS, J. M.; CUNHA, M. N. B. Reflexões sobre a exposição temporária do MAFRO/UFBA - Exu: outras faces. Revista Museologia e Patrimônio, v. 7, p. 191-206, 2014. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/view/341/300

[11] FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no museu afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. II SEBRAMUS - Seminário Brasileiro de Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/

FREITAS, J. M. Uma coleção-documento: estudo da coleção de cópias em gesso de arte centro-africana do Museu Afro-Brasileiro-UFBA - primeiras notícias de pesquisa. Cadernos de Sociomuseologia, v. 53 n. 9. Lisboa, 2017. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/5886

[12] A professora Graça Teixeira coordenou o museu de 2011 a 2018. Informações sobre “Máfricas: as Áfricas do MAFRO” disponíveis em: http://www.mafro.ceao.ufba.br/es/node/26

[13] Mesmo sem um setor específico de Educação, o MAFRO sempre foi vivenciado como um museu “pedagógico”. A dissertação de Daniela Moreira, por mim orientada, no Programa de Pós-Graduação em Museologia, discute este tema. MOREIRA, Daniela. Museu e educação: uma experiência no Museu Afro-brasileiro da Universidade Federal da Bahia. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/22615/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20DANIELA%20MOREIRA2.pdf

[14] JACOBBS, Harriet Ann (1813-1897). Incidentes na vida de uma menina escrava: escrito por ela mesma. Trad. de Ana Ban. São Paulo: Todavia, 2019.


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