sábado, 26 de setembro de 2020

Editorial - Marcelo Cunha

 


Este número Zero materializa um desejo que não é de hoje, nem decorrente exclusivamente desse momento,  no qual estamos, compulsoriamente, isolados fisicamente e, no entanto e paradoxalmente, mais conectados do que nunca. Tal desejo, que é antigo,  está relacionado à nossa constatação de que o Museu Afro-Brasileiro precisa ampliar os seus canais de comunicação e escuta, inclusive para alimentar-se para o reforço das abordagens que realiza através de suas  exposições, atividades culturais e educativas, entre outras, a partir do diálogo com pessoas que vivem, produzem e refletem africanidades.

O seu lançamento faz parte das atividades da 14ª. Primavera dos Museus, iniciativa do IBRAM – Instituto Brasileiro dos Museus, que nessa edição tem o tema: Mundo Digital – Museus em Transformação.  Para este número inaugural, o Zero, escolhemos o formato blog como plataforma, mas o projeto editorial do número Um já está sendo gestado para que a partir do mês de outubro, na última semana de cada mês, tenhamos novidades na rede.

O processo de criação da Revista, desde a discussão conceitual até a produção foi totalmente realizado pela equipe de museologia do museu, Amélia Costa, Ilma Vilasboas e Morgana Dávila, que juntamente comigo e em trabalho remoto e articulado, em menos de três semanas deu conta do desafio editorial inicial. Este é um projeto artesanal, o que para nós é um valor agregado e que muito nos agrada.

No entanto, a concretização dessa proposta só foi possível por contarmos com um time de colaboradores e colaboradoras que, no primeiro contato e convite, responderam positivamente, apesar de todos os compromissos que tomam as suas agendas. A cada pessoa envolvida, nosso agradecimento enfático. A ideia é de que a cada número sejam  publicados escritos desses parceiros, em sessões como as já previstas: Por dentro do Museu (sob responsabilidade da equipe do MAFRO, será dedicada a publicação de temas e informações relativas ao Museu, seu acervo e questões correlatas); Teatro; Futurismos; Literatura; Cultura Material; Impressões da Imprensa; Cinema; Musicalidades; Memórias Pretas; Artes Visuais; Ciência e Tecnologia; Educação, e outras que surgirão, a partir das temáticas apresentadas pelo time de colaboradores e colaboradoras.  Em algumas edições veicularemos dossiês temáticos, com o objetivo de reunir reflexões sobre temas específicos.

Neste número inaugural escolhemos falar das colaboradoras e colaboradores, ou melhor, considerando a relevância de suas trajetórias pessoais e profissionais, pedimos que escrevessem sobre si, pois acreditamos que este é um grande tema a ser tratado, as histórias de vida, estratégias, conquistas resultantes das suas ações e articulações coletivas. Ao longo dos dias subsequentes ao lançamento, serão postados novos textos escritos de colaboradores que estão em processo de finalização do material. Para além de artesanal, e também por isso, esta é uma Revista em processo.

Desejamos boa leitura e diálogos inspiradores.


Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha
Diretor do MAFRO - Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia


Por dentro do Museu



A semântica do tambor

Foto: Claudiomar Gonçalves 
Tambor falante, confeccionado em couro, madeira e cordas.
Origem: Nigéria. Acervo Museu Afro-brasileiro da UFBA 


Você sabe o que é um tambor falante?

Ao longo dos séculos, a humanidade desenvolveu diversas formas e meios de comunicação, o tambor falante é um exemplo. Em algumas partes da África subsaariana, o tambor não era apenas um instrumento musical: fazia parte de um sistema de comunicação. Por meio da percussão, as informações percorriam longas distâncias, de forma rápida e precisa, possibilitando a tomada de decisão e determinando o curso de ações.

 Todavia, para que a comunicação seja eficiente, é preciso que o interlocutor e o ouvinte dominem o mesmo código, tornando o conteúdo que está sendo transmitido inteligível. Na semântica do tambor, é preciso considerarmos que a maioria dos idiomas africanos são tonais. Isso quer dizer que, conforme a entonação dada, uma mesma palavra pode ter significados distintos. A linguagem do tambor, então, deveria reproduzir essa variação tonal, mais aguda ou grave. Porém, ainda havia outra questão: a variação linguística. Uma entonação correspondente a uma palavra e a determinado significado em uma língua africana, poderia corresponder a algo completamente distinto em outra, causando ambiguidades e perdas semânticas. Para resolver essa questão, os percursionistas acrescentavam um pequeno contexto, de forma que, ainda que uma dada entonação tivesse variadas significações, ele determinaria qual o sentido empregado naquele momento, eliminando qualquer dúvida. Exemplificando: “Eles não diziam apenas “cadáver”, preferiam elaborar: “que jaz de costas sobre montes de terra”. Em vez de “Não tenha medo”, diziam: “Faça o coração descer da boca, tire o coração da boca, obrigue-o a descer daí”” (GLEICK, 2013, p 13).

Assim, o tambor conseguiu tornar-se um meio de comunicação eficaz, utilizado durante séculos. O surgimento de novas tecnologias e a difusão de outros meios de comunicação fizeram com que tal pratica fosse cada vez menos demandada, tornando-se escassa nos dias atuais.

Amélia Costa

Museóloga MAFRO-UFBA


Fontes:

Documentação de acervo do Museu Afro-brasileiro da Universidade federal da Bahia

GLEICK, James. A informação: uma história, uma teoria, uma enxurrada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 528 p. ISBN: 978-85-3592-266-0



O MAFRO e Você 2020

 


PROGRAMA:

Eixo temático Nossa diáspora africana de cada dia

Mediação: Prof. Dr. Marcelo Cunha e Ms. Marcos Rodrigues

 

Dia 7/10/2020, 16h

Painel: Sob o olhar africano

Conversa com: Orlando Santos (Angola) - Sociólogo, Prof. Dr. Da Universidade Agostinho Neto/ Angola

Elisio Macamo (Moçambique) - Sociólogo, Prof. Dr. da Universidade de Basiléia/ Suíça

 

Dia 14/10/2020, 16h

Painel: Sob o olhar histórico

Conversa com: Pedro Cubas - Historiador/ Prof. Dr. da UFR - Rondonópolis/ MT)

Antonio Olavo - Cineasta - Salvador/ BA

 

Dia 21/10/2020, 16h

Painel: Sob o olhar da justiça

Conversa com: Samuel Vida - Advogado, Prof. Dr. da UFBA

Claudio Fonseca - Advogado, Pós Graduado em Direito Imobiliário, Pesquisador em direito e relações raciais

 

Dia 28/10/2020, 16h

Painel: Sob o olhar transformador

Conversa com: Edson Bispo - Professor aposentado da rede pública – Cachoeira/BA)

Josiane Clímaco - Professora da rede pública, Doutoranda do PPGEDU/ UFBA)

o endereço da live “O Mafro e Você” será o canal do Youtube Zungu Iyagbá:

 https://www.youtube.com/channel/UCG1OhjKhMzyDlE7NUSJTMQQ





Aislane Nobre

 


 

Nasci em novembro de 1989, na ilha cercada de pedras, antes habitada pelos Tupinambás, que a batizaram como Ilha de Itaparica. Foram nessas águas que passei a minha infância e adolescência, compartilhando com os meus familiares paternos e maternos as suas memórias. Fui criada por meus pais na casa dos meus avôs paternos. Apesar de sempre estar rodeada de afeto e amor, as primeiras vivências que me fizeram entender o que era racismo se deram dentro do âmbito familiar, tendo como agravante o fato de fazermos parte de uma familia inter-racial, na qual as comparações, os apelidos e a definição dos padrões de beleza são constantes. ‘’Portanto, pode-se afirmar que, mesmo em relações com vínculos afetivos sólidos e amorosos, é possível manter e legitimar as hierarquias raciais construídas em uma sociedade racista’’ (SCHUCMAN, 2018, p.110) . 

A minha cor de pele, negra, a textura dos meus cabelos, crespos, o tipo do meu nariz, largo, atraia olhares de desprezo ou reprovação. Ao me tornar adulta pude perceber que ao sair do território familiar, rompendo o laço afetivo do cotidiano, vivenciamos, de forma ainda mais violenta, o impacto da diferença racial. Isso me inquietou e ainda me inquieta, de tal forma que ao escolher o curso de bacharelado em Artes plásticas, como caminho profissional, foi dificil dissociar a minha vivência e os meus traumas do meu fazer artístico.

Ao adentrar o mundo acadêmico, percebi que existia um mar entre nós, águas infinitas da diferença, que começam na ausência de docentes negras/os. Além disso, também era pequena a parcela dos discentes retintos. As disciplinas, pesquisas e livros não contemplavam a minha realidade enquanto mulher afro descendente, o que tornou ainda mais necessário debater sobre esse assunto nesse espaço  “não neutro’’, (KILOMBA, 2018).

Em busca da emancipação e de encontros mais profundos com as minhas raízes ancestrais, durante a graduação em Artes plásticas na Universidade Federal da Bahia realizei duas exposições individuais no Museu Afro Brasileiro da UFBA-MAFRO, ’’ Ipele Awó: a origem da cor” (2012); e Imagens da Ancestralidade em Tramas da Pele (2016). Abordei, em ambas, a origem da cor da minha pele e a origem da cor no Candomblé Nagô e Ketu. Paralelamente, prestei serviço como Arte educadora no MAFRO, por cinco anos (entre 2011 e 2016), onde pude aprofundar a minha investigação artística sobre a arte Africana e Afro brasileira. No Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, dei continuidade à minha trajetória na área museológica, aproximando o meu fazer artístico da história, da memória e da cultura afro-diaspórica, atuando no MUNCAB como assistente de museologia, entre de 2016 a 2018.

Em 2019, participei de uma exposição coletiva internacional, ‘’Circuito de Arte Negra’’ no México, da residência ‘’Fluxos - acervos do Atlântico Sul ‘’, promovida pelo Intervalo - Fórum de Arte e de diversos projetos em colaboração.

Atualmente faço mestrado em Processo de Criação Artistica pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV-UFBA), financiado pela agência CAPES. Integro o Grupo de Pesquisa Arte Híbrida, onde desenvolvo  a pesquisa em processo criativo que debate a construção social da cor de pele como marcador da racialização dos corpos negros. É voltando ao passado, rememorando a minha puerícia, a intensa ligação com meu avô paterno, Arivaldo, que ajudou a fortalecer a minha identidade e as situações de racismo cotidiano, experimentadas dentro e fora do seio familiar, que expresso a minha subjetividade artística.

Na minha pesquisa de mestrado, o objeto de investigação é a epiderme, com ênfase, metodológica, nas minhas cores de pele e nas cores da pele de dezoito familiares paternos, bem como na investigação do corpo da modelo Karine Guimarães, que apresenta um tecido epitelial com áreas despigmentadas, em razão do vitiligo. É a partir do registro fotográfico dessas cores, reunidas e classificadas no transcurso do processo de desenvolvimento do  que denomino Paleta Epidérmica Temporal (PET), que produzo as obras resultantes dessa pesquisa, combinadas com as seguintes técnicas: transferência do thonner, pinturas/tingimento, instalações e vídeoarte.

Problematizo, assim, o paradigma da cor da pele como uma cor-unidade, pressuposto que orienta a produção de artistas contemporâneos em suas múltiplas poéticas, abrindo sendas para discussões sobre o ideal da cor de pele, o apagamento social-simbólico do corpo negro na história da arte, a resistência da cor e a resistência social, o tempo e a memória.

 


Bebel Nepomuceno

 



O PPGMUSEU, O MUSEU AFRO E A ABERTURA À INTERCULTURALIDADE

Em 2014, participei da seleção para Pesquisador/Docente com Bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) do Programa de Pós-Graduação em Museologia do Departamento de Museologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).  Apresentei o projeto de pesquisa intitulado “Áreas de Culturas Negras ao Sul do Atlântico - De uma história eurocêntrica a perspectivas post-coloniais”, com foco em expressividades, linguagens, celebrações, performances, práticas e heranças de grupos afrodescendentes, sobretudo rurais, tema a que me dedico já há alguns anos.

Em meio ao entusiasmo pela aprovação e à expectativa de viver a/na Bahia, particularmente Salvador, advieram as dúvidas: como minha pesquisa poderia se enriquecer no âmbito de um Departamento de Museologia, incorporada a uma linha de pesquisa em Museologia e Desenvolvimento Social? O que eu, vinda de graduação em Comunicação Social/Jornalismo, com especialização em História da África, e Mestrado e Doutorado em História Social, ambos com foco na diáspora africana, teria a oferecer ao programa, uma vez que havia a obrigatoriedade de atividades de docência? Ao fim, o sentido do desafio foi mais forte.

A perspectiva inter e transdisciplinar, alicerçada nos Estudos Culturais e em vertentes dos estudos pós-coloniais, perpassam minha trajetória acadêmica pois, como pontua o filósofo e teórico argentino Enrique Dussel (1966), desconstruir o pensamento imperial, ou a colonialidade do saber, isto é, a perspectiva eurocêntrica como única forma válida de conhecimento, requer “uma pedagogia crítica e fortemente ancorada na ‘interculturalidade’, de forma a permitir a emergência de outros paradigmas e a restituição do direito à enunciação epistêmica” (DUSSEL, 1996).

O desejo de ampliar conhecimentos e redes de troca, estabelecendo novas interlocuções teóricas, me levou a encarar um campo do saber praticamente desconhecido para mim. O Programa de Pós-Graduação em Museologia representava, então, a chance de entrar  em contato com diferentes abordagens, autores, concepções e percepções, sobretudo acerca da cultura afro-brasileira, principalmente considerando um passado dos museus de consolidação de “discursos e sinais sobre a presença negra carregados de lugares comuns, conceitos e preconceitos” (CUNHA, 2006), em contraponto a reflexões do presente que buscam rever formas de representação culturais de grupos não hegemônicos

Ao longo do estágio pós-doutoral a pesquisas sofreu ajustes, passando a focar em práticas e expressividades de grupos subalternizados nas “festas de largo” de Salvador e região do Recôncavo, com vistas a apreender significados políticos e transgressões utilizados como afirmação de suas identidades, em confronto à opressão e dominação racial e em oposição a dispositivos de exclusão social. Além de acompanhar festas e celebrações, levantei bibliografia sobre o tema, me inteirei sobre a amplitude do campo museal, visitei candomblés e fiz uma espécie de etnografia pela vida e espaços baianos. As diferentes vivências possibilitadas pelo estágio foram fundamentais para ampliar meu escopo de conhecimentos.

Assim, saúdo com muita alegria a chegada da Revista do Mafro- Africanidades, que nasce com espírito e sentido intercultural, abrindo-se a colaboradores e pesquisadores de diferentes campos do conhecimento, propondo-se a ser canal de difusão dos plurais universos africanos e afro-diaspóricos.     



[1] Doutora em História Social pela PUC-SP. Cumpriu estágio Pós-Doutoral no PPGMuseu entre dezembro de 2014 e setembro de 2016 com bolsa PNPD-CAPES. Atualmente integra Projeto de Mapeamento das Comunidades Tradicionais de Matriz Bantu na Região Metropolitana de São Paulo, coordenado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Paulo (NEAB/UNIFESP).


Cássia Valle

 


Cumplicidade objetiva entre vida e arte

 Em 25   de janeiro de 1991 o Bando de Teatro Olodum entra em cena, pela primeira vez num casarão que pertence à Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, no Centro Histórico de Salvador, o prédio é considerado patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Atualmente abriga também dois museus ligados a UFBA , o MAFRO ( Museu Afro-Brasileiro) e o MAE ( Museu de Arqueologia e Etnologia). O Bando, atravessou três décadas de trabalhos ininterruptos, chegamos em 2020 com um elenco de 18 atores cujo os quais 70 % são o núcleo de 1991 homens e mulheres de diferentes gerações na faixa de 19 a 60 e poucos anos. Todos somos negros, Artistas que administram bem a difícil equação entre teatro e sobrevivência. Alguns, principalmente as mulheres investimos na vida acadêmica, em 1993 ingresso no curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia  após uma colega do bando 1 tecer comentários entusiasmados sobre o curso, sim é através do bando que encontro informações sobre o curso de museologia. A trajetória do bando é peculiar dentro da produção cultural de uma cidade onde cerca de 80% da população é negra. Engajado numa linguagem cênica contemporânea, o grupo é comprometido com um teatro indignado, mas sem perder o humor. Nossas peças mesclam humor e desmascaramento racial, leveza, ironia, diversão, densidade e militância, além de uma cumplicidade  orgânica entre vida e arte. E na busca de expandir possibilidades e caminhos encontro o curso de museologia e mestres que vão me orientar em espaços educativos para além das fronteiras da universidade sobre militância e cumplicidade objetiva entre arte e vida sobre a ótica da museologia.

Enquanto museóloga, tenho como missão ampliar o acesso aos bens culturais, por meio do desenvolvimento de processos museológicos de forma integrada e articulada com as minhas atividades de artista e gestora cultural do Centro de Pesquisa Moinhos Giros de Arte, para a formulação e o desenvolvimento de ações de preservação, de pesquisa e comunicação que estimulem o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e da historicidade local, nas dimensões simbólica e cidadã, fomentando uma cultura  de conhecimento para transformação dos sujeitos envolvidos e da realidade local, garantindo o direito à memória .

Em 23 outubro de 2017, no Festival A Cena Tá Preta,  produzido pelo Bando de Teatro Olodum, estreio na literatura com o livro Calu uma Menina Cheia de Histórias escrito em coautoria com Luciana Palmeira (Museóloga, historiadora, Escritora especialista docência do ensino superior e elaboração de metodologia especifica de educação para o patrimônio) ilustrado por Maria Chantal, designer, estilista e modelo. Todos os seus trabalhos têm a missão de valorizar a autoestima negra a partir do conhecimento da sua própria história. E editado pela Editora Malê

A carga histórica dos responsáveis pela obra literária reforçam a abordagem negroreferenciada pelo viés da positivação na construção do seu discurso que trata de questões voltadas para a identidade, diversidade, ancestralidade, memória, preservação, patrimônio e museu por meio do uso de linguagem acessível às crianças visando a representatividade e o empoderamento. Calu é uma personagem negra, escrito e ilustrado por três mulheres negras. Dessa forma, já nasce com uma missão específica de conectar a discussão sobre questões étnico-raciais para o público infanto-juvenil. 12   dezembro 2017 a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Realiza sua premiação anual e o prêmio de melhor livro infanto-juvenil do ano de 2017 é conquistado por Calu. A nossa participação enquanto autoras negras em eventos literários são instigantes para o debate sobre os campos de criação, circulação, distribuição e mediação dos livros elaborados por escritores e escritoras negros. As feiras e festas contribuem para divulgar as iniciativas para a promoção destas obras, estimular o debate literário, aproximar autores e leitores e facilitar o acesso às obras destes autores, aproximar editores, livreiros, distribuidores, educadores e autores, de forma que a literatura negroreferenciada chega aos leitores potenciais. Calu anuncia que representatividade importa. A história é retroalimentada pela magia com que conquista os seus leitores e vai ganhando novos formatos, o bloquinho de poemas e Canções da Calu e o Sarauzinho da Calu; o Sarauzinho da Calu inaugura a minha imersão no universo da dramaturgia e direção teatral consequência das investigações de processos artísticos sobre teatro, literatura , representatividade, tradição e memória para o teatro infantojuvenil. Suas congruências e a transformação dessas pesquisas em partituras cênicas sintonizadas com a valorização das raízes do universo Afro-diaspórico resultaram na criação de um projeto cênico que com ares de representatividade e afeto. De forma lúdica, criativa e transformadora, retrata a transmissão de conhecimento através da oralidade, como contação de histórias, poemas e canções infantis compostas especialmente para o espetáculo pelo diretor musical Cell Dantas (ator e musico do Bando de Teatro Olodum).

O Sarauzinho utiliza a ferramenta da poesia, música e literatura infanto-juvenil para falar de identidade, representatividade e empoderamento. As memórias dos leitores, inspiradas pela narrativa de Calu, são registradas e contadas no bloquinho complementando e recriando esse universo carregado de símbolos da cultura afro diaspórico.

Nesse percurso aqui apresentado estão lembranças; soma-se também conteúdo e percepções surgidos a partir do estudo das fontes teóricas que alicerçaram a minha trajetória profissional no teatro, na museologia, arte-educação e literatura. Junto a tudo, os imprescindíveis bloquinhos de anotações foram revistos. Foram assim resgatadas histórias e referencias quase esquecidas, que revelam o itinerário de um processo de construção de cumplicidade objetiva  entre a vida, o teatro, a museologia e a literatura. Resultado do contato entre teoria e pratica, no meu fazer profissional porque as coisas que a gente faz, conhece ou sabe, são o produto de uma complexidade de influências que se misturam. Transformam-se e participam de nossas vidas.

CÁSSIA VALLE, Atriz, gestora cultural, Museóloga, historiadora, psicopedagoga, escritora, especialista em Arte e Patrimônio Cultural (FSBB) Faculdade São Bento da Bahia e elaboração de metodologia especifica de educação para o patrimônio.


Gilberto Santiago

Quem é Gilberto Santiago:

Músico, educador e gestor baiano. Bacharel em Comunicacão Social pela UNIFACS, e música na UFBA, atualmente é mestrando em educação musical também pela UFBA. Por três vezes foi contemplado com o Troféu Caymmi nas categorias: Melhor instrumentista (percussão) em 2000, Categoria Especial com o Grupo Thris (três violoncelos e percussão) 2001, e com o Grupo de Percussão da UFBA em 2004.

É membro efetivo da Orquestra Sinfônica da Bahia há 20 anos e músico da Escola de Dança da UFBA há 8. Tem atuado como compositor de trilhas para dança e audiovisual. Desenvolve atividade constante como camerista convidado, maestro e compositor do Grupo de Percussão da UFBA, tendo obras gravadas no 1º e 2º cds deste.

Compôs para BTCA a trilha Caleidoscópio, para coreografia homônima de Ajax Viana, trilha para o espetáculo Mulheres de Asè, de Edleusa Santos, trilha para o programa de TV infantil A tuma da Àrvore, (veiculado na TVE e TV UNIFACS) e a série A postos, de autoria de Clarissa Braga. Compôs trilha para os espetáculos Ziriguidum e Com o que Sonhamos do GDC UFBA e para o filme Ruínas de Daniela Guimarães.

Dentre suas composições, destacam-se a sua obra Abertura Percussiva,  que foi executada pelo Grupo de Percussão da UFBA em mais de 74 cidades brasileiras, na Europa, Estados Unidos e gravada no 1° CD do Grupo, e a canção Batuquinho, para o CD ELLA, da cantora Mariella Santiago, uma das 50 músicas selecionadas no Festival de Educadora 2015.

É membro fundador das Orquestras Afrosinfônica e Sinfônica Popular Brasileira de Camaçari. 

Implementou e foi o Coordenador do 1° Projeto Pedagógico de Musicalização Infanto-Juvenil, através do ensino orquestral, da SEDUC-CAM nos anos de 2011 e 2012, gerido pela da Cidade do Saber em Camaçari.

Atualmente é o diretor de música e gestão da ONG Casa da Ponte e do Núcleo Moderno de Música, escola criada há 10 anos em parceria com o maestro Ubiratan Marques.

O novo como trajetória que alimenta os percursos

Filho de uma professora, com um artista e petroleiro,  cresceu com seus irmãos e parceiros de arte, num ambiente de flexibilidade, compreensão de aptidões e abertura, numa espontânea pedagogia moderna, aliada a uma constante oferta de arte em suas vidas. Nunca um modelo predefinido, apesar de uma implícita áurea artística. Sempre tendo o apoio e investimento árduo em tantas experiências quantas fossem possíveis e desejáveis.

Muitos percursos e por vezes, simultâneos caminhos à escolher, mas a certeza aprendida em casa, de que a identidade se desenvolvia no prazer, na cumplicidade, e numa sensação de conexão íntima e pessoal com cada experiência artística e de vida.

Começou a estudar música aos 17 anos, no curso Básico da EMUS-UFBA, com o professor Fernando Santos, graduando-se mais tarde com o professor Dr. Jorge Sacramento, que também foi discípulo do mesmo professor.

Em 1997, ganhou o prêmio Bahia Aplaude Ano V, como melhor espetáculo infanto-juvenil, com o musical "Auê, Um Programa Infantil", do grupo músico-teatral Barra Manteiga.

Em 2009, juntamente com o maestro e pianista Ubiratan Marques, fundou em Salvador, o Núcleo Moderno de Música, escola pioneira em transitar de forma acolhedora pelos conceitos da música popular e da música erudita. No Núcleo, implementou o curso de Percussão com Ênfase em Teclados, onde lecionou aulas de música de câmera percussiva e vibrafone.

Em 2014, criou em parceria com a Bamuca (Banda Municipal de Camaçari), o curso OGRUPE (Percussão Orquestral para Grupo), onde, ministrando aulas gratuitas para jovens da rede pública de ensino, fundou também, o GPCAM, 1º Grupo de Percussão Orquestral de Camaçari.

Foi um dos produtores musicais do DVD ELLA é do Brasil de Mariella Santiago, contemplado no Natura Musical, e do CD Branco, da Orquestra Afrosinfônica, contemplado em edital Setorial da Secult-Ba.

Teve também, a oportunidade de tocar com importantes nomes do cenário nacional e internacional como Hermeto Pascoal, maestro Duda do Recife, maestro Isaac Karabtchevisk, maestro Júlio Medalha, maestrina Ligia Amadio, o tradicional sambista baiano Riachão, Chico Cézar, Maria Alcina, Pepeu Gomes e também participou do DVD Music in High Places, da cantora americana vencedora do Grammy, India Arie, filmado na Bahia em 2002.

Atua como músico profissional há aproximadamente 29 anos. Juntamente com seus irmãos e parceiros musicais, o bacharel em Contrabaixo Acústico pela UFBA, Ângelo Santiago e sua irmã, a cantora, compositora e jornalista, Mariella Santiago,  gravaram 2 cds e 1 DVD, da obra de Mariella. Desde 2018 desenvolve o projeto do DuOrigem com Ângelo Santiago.

Em 2016, foi premiado com a Bolsa Funarte para artistas e produtores negros, para produção de 1 cd e songbook com suas obras e histórias da sua trajetória composicional, o projeto Batuques Sinfônicos.

Em 2019, foi homenageado pelo naipe de percussão da OSBA, num Concerto comemorativo dos seus 20 anos de carreira composicional dedicada à percussão, no Goeth Institut.

Gildon Oliveira

 

FOTO: GABRIELLE GUIDO

 

Sou Gildon Oliveira. Sou negro. Sou artista e professor. Tenho aqui um desejo de compartilhar ideias e discutir temáticas para os olhares que se aguçam e acreditando na força do encontro, me alegro em ser colaborador da Revista do Mafro – Africanidades, louvando a disposição do Museu em colocar-se, como mencionado no convite, “como espaço de difusão de questões importantes para o entendimento do universo africano e afro-diaspórico, a partir de questões relacionadas ao passado ou ao presente.”

Não farei promessas de grandes reflexões, porque me interessam as pequenas, as que pertencem ao ordinário, aquelas repetições que reforçam sistema e garantias do mesmo status, do mesmo estado para as maiorias que são minorizadas.

Comprometo-me com a disposição de provocar discussões sobre identidades negras, realidades negras, negritudes. Se puder me valer da arte e ensaiar outras dinâmicas de enfrentamentos, ficarei satisfeito nesse exercício de deixar algumas coisas bem pretas, pois tenho algumas inquietudes que ditarão o tom das escritas, mas o que mais me seduz para essa empreitada é a certeza de que não traçarei nenhuma linha só. Outras palavras vieram antes das minhas, algumas outras se unirão as minhas e faremos caminhos para tantas palavras que virão compor esses registros.

Tenho interesse especial em pensar arte feita por pessoas negras e discutir perspectivas de representação, representatividade e identificação, partindo do ideal de que a arte pode e deve mais provocar do que dar respostas. E que é fundamental e urgente discutir o campo onde a arte negra é produzida e está inserida para reconhecer e modificar padrões opressivos e regimes de manutenção de privilégios que excluem práticas artísticas negras alijando existências afropotentes.

Espero que essa iniciativa tenha um caminho longo e nos proporcione a troca, a multiplicidade, a generosidade do compartilhar impressões de mundo e subjetividades.

Até as próximas palavras. Até as próximas linhas.

 

Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA tendo como linha de pesquisa a dramaturgia. Especialista em Roteiros para Audiovisual e Graduado em Rádio e Tv. Atua desenvolvendo dramaturgia para Teatro, Cinema e Televisão. É professor de roteiro e dramaturgia em instituições de ensino superior desde 2014.

Dentre seus trabalhos, destacam-se: Oficina de Teledramaturgia para Novos Autores da Rede Globo (2010); Café e Outras Pessoas (2011) – Concurso Público de Apoio ao Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos Inéditos de Longa Metragem – MinC; Olorum (2012) – Espetáculo infatojuvenil indicado ao Prêmio Braskem na categoria melhor texto ; Finalista do Concurso Nacional de Roteiros de Aguinaldo Silva (2013) com o trabalho Na Boca do Mundo, A Boca da Serpente; Avesso espetáculo teatral infanto-juvenil (2016) indicado ao Prêmio Braskem na categoria melhor texto dramático; Das “coisa” dessa vida – Espetáculo teatral (2019) e Vermelho Melodrama – Espetáculo teatral (2019); indicado ao Prêmio Braskem na categoria melhor texto dramático; Beleza da Noite – Criação e roteirização do Especial de fim de ano da TV Bahia integrando o Programa de Expansão de Dramaturgia da Rede Globo (2020)


Jamile Borges da Silva

 



1970 : Jamile Borges da Silva.

Nasci no bairro da Liberdade, bairro que já foi considerado o mais negro da cidade de Salvador, na rua da feira, que ligava a avenida principal – av. Lima e Silva – às ruas que desembocavam em labirintos humanos, pretos, pobres e potencialmente atentos a dinâmica de um mundo em transformação que seguia nos invisibilizando a despeito de nossa numerária e forte presença em algumas cenas já bastante conhecidas da cidade de Salvador, a ‘velha mulata’, palco das melhores histórias, vividas, contadas e inventadas.

Filha caçula de uma família de onze irmãos – seis mulheres e cinco homens – estudei do ano ginasial até o ensino médio na Escola Estadual Duque de Caxias, onde desenvolvi o gosto pela vida política ainda nos estertores da transição do regime ditatorial para a incipiente democracia que se firmaria na constituição de 1988, tendo participado ativamente do movimento estudantil - organizando, por exemplo, o grêmio estudantil daquele colégio numa época em que todas as agremiações escolares levavam o nome de ‘centro cívico’ - entre os anos de 1984 a 1987, quando entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.

A questão racial tardaria a chegar para mim como tema de reflexões acadêmicas, embora, como toda mulher negra nesse país, tenha sido alvo de discriminações – visíveis ou subliminares - numa cidade que vivia sob os auspícios de uma modernidade que tardava a chegar. A Salvador celebrada nos tecidos afirmativos e nas narrativas épicas do bloco Ilê Ayê se afirmava como um território de profundas desigualdades demarcando a segregação socioespacial e econômica que se tornaria mais presente em minha vida nos trânsitos diários entre o bairro da Liberdade e o de Ondina e adjacências onde estão os campi da UFBA.

Aí começa uma intensa troca intelectual com colegas de diferentes cursos e com professores e professoras que se tornariam referência em meu processo formativo, desvelando as raízes e rotas do racismo estrutural e da formação da sociedade brasileira em leituras que me aproximaram da produção dos cânones das humanidades – Escola de Frankfurt, Escola de Chicago, Escola dos Annales – aos intelectuais brasileiros (poucas mulheres intelectuais foram referenciadas nos programas de curso) Caio Prado, Gilberto Freire, Otavio Ianni, Gilberto Velho, Roberto da Matta, Escola de sociologia paulista, poucos ou inexistentes intelectuais andinos/as e africanos/as. 

Ao fim da graduação, tendo elaborado um trabalho de conclusão na área da antropologia cultural – com uma pesquisa sobre socioantropologia da música na Bahia – me encontro com uma chamada para uma bolsa de iniciação científica na Faculdade de Educação, no núcleo de currículo onde passo a investigar os meandros e os discursos que conformavam a cena nacional e internacional sobre epistemologia do currículo e sobre a relação entre a categoria ‘trabalho’ e produção do conhecimento enquanto substrato das matrizes curriculares de nossas escolas.  Essa experiência foi central em minha formação como intelectual . Naquela altura era impensável tratar de relações étnico-raciais, gênero ou o campo da teoria crítica na faculdade de educação considerando que sequer havia linha de pesquisa consolidada sobre o tema. Aqui começa minha reaproximação com os colegas da área da antropologia. Fui convidada a participar de um projeto para construir um embrião daquilo que viria a se tornar o Museu Afrodigital da memória afro-brasileira. Naquela época, começo a articular duas áreas de trabalho: por um lado a tecnologia – em meio à popularização da internet nas escolas e universidades – e, de outro, a antropologia, a pensar na recuperação de uma leitura crítica sobre a memória das populações africanas e afro-brasileiras. Esse projeto de museu digital de memória africana, me levou para o campo dos estudos étnicos e africanos no Brasil me impulsionando a realizar um doutorado na área. Essa aproximação e flerte com a museologia tem resultado em inúmeros trabalhos, publicações e projetos de pesquisa entre Brasil e África, sobretudo com os países do PALOP. Lá, começamos a organizar uma repatriação de acervos e a consolidar uma rede pesquisadores e pesquisadoras que já resultou em alguns livros sobre o tema da memória, patrimônio e digitalidade. 

Durante os anos do governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011), vários projetos de transferência de tecnologia foram desenvolvidos de forma persistente e significativa no continente africano. E nesse contexto montamos um projeto com o Arquivo Histórico de Moçambique, com o INEP/Guiné-Bissau e com o Arquivo histórico de Cabo Verde para trabalhar com a formação de pessoal no âmbito da conservação digital do acervo daquelas instituições. Desde 2010 foram muitas viagens com seis missões de trabalho como uma iniciativa pioneira nas humanidades, pois os projetos de transferência tecnológica até então se fazia primordialmente em outras áreas, como agricultura ou ciências da saúde. Infelizmente, após o golpe de 2016 que depôs a Presidente Dilma V. Roussef, muitas inciativas foram descontinuadas.

Como docente da UFBA desde 2004, tendo já passado por outras duas universidades estaduais (UNEB 1999-2001 e UEFS 2001 a 2003), celebro vinte anos como professora universitária e investigadora numa instituição ainda eminentemente branca e masculina em suas instancias decisórias e distribuição de poder. Atualmente, tenho a honra de coordenar o Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos/Posafro, situado no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, onde sigo desenvolvendo diversos projetos de cooperação e intercâmbios com diferentes universidades africanas e latinomericanas privilegiando o eixo Sul-Sul, envolvendo trânsitos de estudantes, professores e discentes em projetos individuais e coletivos. 

Em 2017-2018 realizei uma estancia pós-doutoral na Universidade de Lisboa/Portugal com passagem pela Universidade de Mar Del Plata/Argentina. Nessas duas instituições pude ampliar e intensificar uma nova rede de alianças intelectuais e afetivas que foram fundamentais para incorporação em meus trabalhos de categorias e autoras – mulheres latinas e africanas e intelectuais trans – que tem me estimulado a pensar em novas pedagogias do desejo para fabricação de outras sensibilidades analíticas e investigativas. Com um projeto sobre Afrofuturismo e as implicações teóricas sobre os modos de representação do continente africano articulando tecnologias, narrativas identitárias, crononormatividades e crítica a genealogia ocidental produzida sobre os africanos e suas diásporas, me filio a novas leituras sobre a África contemporânea em uma perspectiva crítica atenta aos desdobramentos dos chamados cultural studies em dimensão transcontinental.

Minha biografia intelectual ou a genealogia do meu processo formativo ocorreu no contexto universitário brasileiro, que é profundamente e ainda absolutamente eurocêntrico. Tenho a felicidade de coordenar em parceria com outros colegas a Escola Doutoral Fábrica de Ideias que há vinte anos vem me possibilitando o encontro com intelectuais e jovens investigadores e investigadoras preocupados com o tema das relações raciais, das ações afirmativas, das populações indígenas, da questão do patrimônio e de temas caros e sensíveis às populações historicamente subalternizadas. Defendo uma universidade mais horizontal, especialmente no campo da produção de conhecimento. Uma universidade menos opressiva e com mais justiça epistêmica. Desejo que as universidades, seculares, eurocêntricas, elitistas e opressivas, sejam paulatina e progressivamente ene.grecidas e fortalecidas com nossos corpos dissidentes e com os vigorosos saberes dos povos ancestrais e povos da terra


Joseania Miranda Freitas

Revista do MAFRO - Africanidades

Com muita alegria e imersa no compromisso institucional e afetivo, aceitei o honroso convite para participar do número zero desta Revista, que faço votos que se torne um importante canal para registros de ações que sistematizam as pesquisas e conhecimentos sobre as heranças seculares de gerações de africanas e africanos, que aqui chegaram, traficadas nos fétidos navios negreiros, somente com seus corpos nus, sob o julgo da colonização-escravista e nos legaram conhecimentos e ferramentas operacionais que nos erguem e fortalecem na contemporaneidade para o enfrentamento do racismo em suas diversas faces, ainda presente no cotidiano.

Escrever este pequeno relato me fez recuar no tempo 33 anos. Levou-me de volta ao ano de 1987, quando conheci o MAFRO. Naquela época trabalhava na Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, ainda estudante de Museologia e, com o colega Marcelo Cunha, tivemos a oportunidade de montar uma exposição em parceria com o MAFRO e entidades do movimento negro, como parte das comemorações da “I Semana da Consciência Negra para Crianças” [1]. Esta experiência inicial, na sistematização de histórias e memórias de sobreviventes do tráfico negreiro e da escravidão, junto com outras vividas também no MAFRO me permitiram ser quem sou e estar onde estou. No MAFRO foi possível vivenciar e consolidar compromissos com estes legados, expressos em atos de bravura e beleza desta gente, que como bem enfatiza a ex-deputada e ex-ministra francesa, a guianense, Christiane Taubira, da escravidão também podemos extrair, para além da violência, a beleza das histórias e memórias que nos permitiram chegar onde estamos: “Uma história de violência e beleza. A beleza pode vencer.” (TAUBIRA, 2017, p. 12).[2] Entre 1995 e 1997 tive a oportunidade de vivenciar uma experiência mais longa no museu, atuando como consultora no projeto da primeira reestruturação expográfica. Trabalhei na proposta de uma Sala da Herança Afro-Brasileira, pensada para incluir temas relativos às organizações de resistência, construção e afirmação de identidade. No entanto, devido à perda de espaços físicos, não foi possível a sua realização.[3]

Depois destes dois momentos pontuais, em 2002, ao ser aprovada como docente do curso de Museologia, passei imediatamente a atuar como pesquisadora, articulando docência, pesquisa e extensão, ao novo projeto “Ações Afirmativas Museológicas”, que contava com: “[...] a participação de professores e estudantes de Museologia/ UFBA e outras áreas relacionadas no desenvolvimento de atividades que dão prioridade à formação dos alunos para a compreensão das coleções que representam as dinâmicas culturais afrodiaspóricas, ou seja, coleções que compõem o patrimônio cultural afrodescendente, diretamente relacionado com as lutas pela liberdade.” (FREITAS, 2013, p. 117) [4].

Reflexões e resultados (parciais e/ou finais) sobre os processos de pesquisa realizados nos subprojetos foram apresentados em congressos e publicados em periódicos nacionais e internacionais[5]. Em 2005 participei do projeto institucional de pesquisa, educação e extensão para produção de cartilhas, partir de estudos do acervo. O projeto trabalhou com a formação de jovens monitores de museus. [6] Em 2010, respondendo a uma demanda comunitária, o subprojeto (pesquisa e extensão): “Memórias de Mãe Nilzete de Iemanjá e do Terreiro de Oxumaré: a fala dos mais velhos”, foi desenvolvido com bolsistas de Iniciação Científica, como uma atividade preparatória para as comemorações dos 21 anos de falecimento de Mãe Nilzete, no ano seguinte. Foram realizadas ações de conservação preventiva, em parceria com a profª Graça Teixeira, que resultaram numa cartilha entregue ao Terreiro, com o relatório contendo a organização do acervo documental, com os registros em áudios e transcrições das falas das pessoas mais velhas.[7]

Do processo de estudo da coleção Capoeira, iniciado em 2002, duas outras fases foram vivenciadas, entre 2011-2012 e 2013-2015, apresentando as primeiras reflexões em eventos acadêmicos, que estimularam publicações.[8] O projeto foi concluído em 2015, com a entrega do projeto expositivo, realizado com as equipes de bolsistas e com a publicação do livro catálogo: “Uma coleção biográfica: os Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA”[9], que teve apoio financeiro do Edital do Fundo de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

As ações de docência, pesquisa e extensão são fortalecidas no cotidiano vivido na instituição, implicando em diversificadas ações, como a participação na curadoria da exposição temporária “Exu: outras faces”, resultando na publicação das reflexões em um artigo com Marcelo Cunha.[10] Na perspectiva de estudo de acervo, registro o último trabalho de pesquisa, com diversas fases e bolsistas de Iniciação Científica, em articulação com as ações de conservação preventiva, dirigidas pela profª Graça Teixeira[11]. O estudo da coleção de cópias em gesso, a primeira coleção do museu, com as peças inicialmente numeradas de 01 a 12, estimulou o seu destaque na nova exposição de longa duração, “Máfricas: as Áfricas do MAFRO”, coordenada pela profª Graça Teixeira.[12]

Ao revisar esta relação de 33 anos com o MAFRO sinto que ficou ainda mais evidente o compromisso institucional com ações de pesquisa que têm buscado evidenciar os estudos ancorados nas produções africanas e afrodiaspóricas. O museu se configura, cada vez mais, como uma instituição educadora.[13] Lugar de estudos e descobertas sobre os atos de bravura e de beleza de povos africanos e de suas descendências nas Américas, frente ao tráfico e à escravidão. Um lugar que me remete à imagem luminosa das lembranças da avó apresentadas nas últimas palavras da obra da ex-escravizada estadunidense, Harriet Ann Jacobs: “[...] a retrospectiva não vem totalmente sem alívio, porque com aquelas memórias sombrias chegam lembranças ternas da minha boa avó idosa, como luz, nuvens felpudas flutuando sobre um mar escuro e agitado.” (JACOBS, 2019, p. 270).[14]

[1] Esta experiência, de aproximação institucional, está publicada no artigo: “Um encontro de memórias de instituições protagonistas - ou quando uma biblioteca infantil se encontra com um museu universitário”, no livro: GOMES, H. F.; NOVO, H. F. Informação e protagonismo social.  Salvador: EDUFBA, 2017. Disponível para compra em:  http://www.edufba.ufba.br/2017/10/informacao-e-protagonismo-social/

[2] TAUBIRA, Christiane. L’esclavage raconté à ma fille; une histoire à connaitre et à interroger. France: Philippe Rey (Points). 2015.

[3] Publicação referente a esta experiência e detalhamento do projeto: FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no Museu Afro-Brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. Repositório I SEBRAMUS. Brasília: UnB. Disponível em:  http://www.sebramusrepositorio.unb.br/index.php/1sebramus/ISebramus/paper/view/458/27

[4] Em 2013, convidada pelo IBRAM - Instituto Brasileiro de Museus, fiz uma palestra (posteriormente publicada) no “VII Encontro Iberamericano de Museus”, apresentando um balanço das ações por mim coordenadas na instituição. FREITAS, J. M. Memorias afro-descendientes y la museística: algunas reflexiones. Revista Brasileira do Caribe, São Luís-MA, Brasil, Vol. XIV, nº27, Jul-Dez 2013, p. 117-137 Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1591/159130118006.pdf

[5] FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G.; JESUS, P. M. de. Obras primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade: o Carnaval de Barranquilla e o Palenque de São Basílio (Colômbia) e o Samba de Roda do Recôncavo Baiano (Brasil). Revista Brasileira do Caribe, v. 14, p. 501-531, 2007. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2457

FREITAS, J. M.; FERREIRA, L. G. O samba de roda na celebração de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira-Bahia. Políticas Culturais em Revista, 1 (3), p. 37 - 46, 2010. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/view/4761

[7] Um artigo relatando as atividades também foi publicado. FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no museu afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. II SEBRAMUS – Seminário Brasileiro de Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/

[8] FREITAS, J. M.; GALAS, D. M.; KROETZ, S. A coleção capoeira do Museu Afro-brasileiro (MAFRO/UFBA): os mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde e a documentação museológica. Revista Ventilando Acervos. Volume 1, Número 1, 2013. Florianópolis: Museu Victor Meirelles/IBRAM/ MinC, 2013. Disponível em: http://ventilandoacervos.museus.gov.br/wp-content/uploads/2015/10/Revista-Eletronica-Ventilando-Acervos-vol-01.pdf

FREITAS, J. ARAÚJO FILHO, J. J.; BRITO, J. H. B. A Capoeira dos Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no acervo do Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Revista Pontos de Interrogação, v. 3, p. 175-186, 2013. Disponível em: https://www.revistas.uneb.br/index.php/pontosdeint/article/view/1767/1187

[9] FREITAS, J. M. (Org.). Uma coleção biográfica: os Mestres Pastinha, Bimba e Cobrinha Verde no Museu Afro-Brasileiro da UFBA. Salvador: EDUFBA, 2015. Disponível para compra em: http://www.edufba.ufba.br/2015/12/uma-colecao-biografica/

[10] FREITAS, J. M.; CUNHA, M. N. B. Reflexões sobre a exposição temporária do MAFRO/UFBA - Exu: outras faces. Revista Museologia e Patrimônio, v. 7, p. 191-206, 2014. Disponível em: http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/view/341/300

[11] FREITAS, J. M. Experiências de pesquisa no museu afro-brasileiro/UFBA: registros de memórias africanas e afrodescendente. II SEBRAMUS - Seminário Brasileiro de Museologia. Recife, 2015. Disponível em: http://www.sebramusrepositorio.unb.br/

FREITAS, J. M. Uma coleção-documento: estudo da coleção de cópias em gesso de arte centro-africana do Museu Afro-Brasileiro-UFBA - primeiras notícias de pesquisa. Cadernos de Sociomuseologia, v. 53 n. 9. Lisboa, 2017. Disponível em: https://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/5886

[12] A professora Graça Teixeira coordenou o museu de 2011 a 2018. Informações sobre “Máfricas: as Áfricas do MAFRO” disponíveis em: http://www.mafro.ceao.ufba.br/es/node/26

[13] Mesmo sem um setor específico de Educação, o MAFRO sempre foi vivenciado como um museu “pedagógico”. A dissertação de Daniela Moreira, por mim orientada, no Programa de Pós-Graduação em Museologia, discute este tema. MOREIRA, Daniela. Museu e educação: uma experiência no Museu Afro-brasileiro da Universidade Federal da Bahia. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/22615/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20DANIELA%20MOREIRA2.pdf

[14] JACOBBS, Harriet Ann (1813-1897). Incidentes na vida de uma menina escrava: escrito por ela mesma. Trad. de Ana Ban. São Paulo: Todavia, 2019.


Editorial - Marcelo Cunha

  Este número Zero materializa um desejo que não é de hoje, nem decorrente exclusivamente desse momento,   no qual estamos, compulsoriamen...