sábado, 26 de setembro de 2020

Jamile Borges da Silva

 



1970 : Jamile Borges da Silva.

Nasci no bairro da Liberdade, bairro que já foi considerado o mais negro da cidade de Salvador, na rua da feira, que ligava a avenida principal – av. Lima e Silva – às ruas que desembocavam em labirintos humanos, pretos, pobres e potencialmente atentos a dinâmica de um mundo em transformação que seguia nos invisibilizando a despeito de nossa numerária e forte presença em algumas cenas já bastante conhecidas da cidade de Salvador, a ‘velha mulata’, palco das melhores histórias, vividas, contadas e inventadas.

Filha caçula de uma família de onze irmãos – seis mulheres e cinco homens – estudei do ano ginasial até o ensino médio na Escola Estadual Duque de Caxias, onde desenvolvi o gosto pela vida política ainda nos estertores da transição do regime ditatorial para a incipiente democracia que se firmaria na constituição de 1988, tendo participado ativamente do movimento estudantil - organizando, por exemplo, o grêmio estudantil daquele colégio numa época em que todas as agremiações escolares levavam o nome de ‘centro cívico’ - entre os anos de 1984 a 1987, quando entrei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.

A questão racial tardaria a chegar para mim como tema de reflexões acadêmicas, embora, como toda mulher negra nesse país, tenha sido alvo de discriminações – visíveis ou subliminares - numa cidade que vivia sob os auspícios de uma modernidade que tardava a chegar. A Salvador celebrada nos tecidos afirmativos e nas narrativas épicas do bloco Ilê Ayê se afirmava como um território de profundas desigualdades demarcando a segregação socioespacial e econômica que se tornaria mais presente em minha vida nos trânsitos diários entre o bairro da Liberdade e o de Ondina e adjacências onde estão os campi da UFBA.

Aí começa uma intensa troca intelectual com colegas de diferentes cursos e com professores e professoras que se tornariam referência em meu processo formativo, desvelando as raízes e rotas do racismo estrutural e da formação da sociedade brasileira em leituras que me aproximaram da produção dos cânones das humanidades – Escola de Frankfurt, Escola de Chicago, Escola dos Annales – aos intelectuais brasileiros (poucas mulheres intelectuais foram referenciadas nos programas de curso) Caio Prado, Gilberto Freire, Otavio Ianni, Gilberto Velho, Roberto da Matta, Escola de sociologia paulista, poucos ou inexistentes intelectuais andinos/as e africanos/as. 

Ao fim da graduação, tendo elaborado um trabalho de conclusão na área da antropologia cultural – com uma pesquisa sobre socioantropologia da música na Bahia – me encontro com uma chamada para uma bolsa de iniciação científica na Faculdade de Educação, no núcleo de currículo onde passo a investigar os meandros e os discursos que conformavam a cena nacional e internacional sobre epistemologia do currículo e sobre a relação entre a categoria ‘trabalho’ e produção do conhecimento enquanto substrato das matrizes curriculares de nossas escolas.  Essa experiência foi central em minha formação como intelectual . Naquela altura era impensável tratar de relações étnico-raciais, gênero ou o campo da teoria crítica na faculdade de educação considerando que sequer havia linha de pesquisa consolidada sobre o tema. Aqui começa minha reaproximação com os colegas da área da antropologia. Fui convidada a participar de um projeto para construir um embrião daquilo que viria a se tornar o Museu Afrodigital da memória afro-brasileira. Naquela época, começo a articular duas áreas de trabalho: por um lado a tecnologia – em meio à popularização da internet nas escolas e universidades – e, de outro, a antropologia, a pensar na recuperação de uma leitura crítica sobre a memória das populações africanas e afro-brasileiras. Esse projeto de museu digital de memória africana, me levou para o campo dos estudos étnicos e africanos no Brasil me impulsionando a realizar um doutorado na área. Essa aproximação e flerte com a museologia tem resultado em inúmeros trabalhos, publicações e projetos de pesquisa entre Brasil e África, sobretudo com os países do PALOP. Lá, começamos a organizar uma repatriação de acervos e a consolidar uma rede pesquisadores e pesquisadoras que já resultou em alguns livros sobre o tema da memória, patrimônio e digitalidade. 

Durante os anos do governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011), vários projetos de transferência de tecnologia foram desenvolvidos de forma persistente e significativa no continente africano. E nesse contexto montamos um projeto com o Arquivo Histórico de Moçambique, com o INEP/Guiné-Bissau e com o Arquivo histórico de Cabo Verde para trabalhar com a formação de pessoal no âmbito da conservação digital do acervo daquelas instituições. Desde 2010 foram muitas viagens com seis missões de trabalho como uma iniciativa pioneira nas humanidades, pois os projetos de transferência tecnológica até então se fazia primordialmente em outras áreas, como agricultura ou ciências da saúde. Infelizmente, após o golpe de 2016 que depôs a Presidente Dilma V. Roussef, muitas inciativas foram descontinuadas.

Como docente da UFBA desde 2004, tendo já passado por outras duas universidades estaduais (UNEB 1999-2001 e UEFS 2001 a 2003), celebro vinte anos como professora universitária e investigadora numa instituição ainda eminentemente branca e masculina em suas instancias decisórias e distribuição de poder. Atualmente, tenho a honra de coordenar o Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos/Posafro, situado no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, onde sigo desenvolvendo diversos projetos de cooperação e intercâmbios com diferentes universidades africanas e latinomericanas privilegiando o eixo Sul-Sul, envolvendo trânsitos de estudantes, professores e discentes em projetos individuais e coletivos. 

Em 2017-2018 realizei uma estancia pós-doutoral na Universidade de Lisboa/Portugal com passagem pela Universidade de Mar Del Plata/Argentina. Nessas duas instituições pude ampliar e intensificar uma nova rede de alianças intelectuais e afetivas que foram fundamentais para incorporação em meus trabalhos de categorias e autoras – mulheres latinas e africanas e intelectuais trans – que tem me estimulado a pensar em novas pedagogias do desejo para fabricação de outras sensibilidades analíticas e investigativas. Com um projeto sobre Afrofuturismo e as implicações teóricas sobre os modos de representação do continente africano articulando tecnologias, narrativas identitárias, crononormatividades e crítica a genealogia ocidental produzida sobre os africanos e suas diásporas, me filio a novas leituras sobre a África contemporânea em uma perspectiva crítica atenta aos desdobramentos dos chamados cultural studies em dimensão transcontinental.

Minha biografia intelectual ou a genealogia do meu processo formativo ocorreu no contexto universitário brasileiro, que é profundamente e ainda absolutamente eurocêntrico. Tenho a felicidade de coordenar em parceria com outros colegas a Escola Doutoral Fábrica de Ideias que há vinte anos vem me possibilitando o encontro com intelectuais e jovens investigadores e investigadoras preocupados com o tema das relações raciais, das ações afirmativas, das populações indígenas, da questão do patrimônio e de temas caros e sensíveis às populações historicamente subalternizadas. Defendo uma universidade mais horizontal, especialmente no campo da produção de conhecimento. Uma universidade menos opressiva e com mais justiça epistêmica. Desejo que as universidades, seculares, eurocêntricas, elitistas e opressivas, sejam paulatina e progressivamente ene.grecidas e fortalecidas com nossos corpos dissidentes e com os vigorosos saberes dos povos ancestrais e povos da terra


4 comentários:

  1. Jamile maravilhosa, gente como a gente, cheia de brilhos e cores! Quem sou eu, uma professora que tem orgulho de estar no ambiente que você mais que tudo nos dignifica.

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  2. Professora Jamile, que trajetória acadêmica inspiradora. As "alianças intelectuais e afetivas" citadas por você fazem ecoar as necessidades coletivas e colaborativas de produção entre as instituições educacionais, em especial entre Educação Básica e Cursos de Graduação. Obrigada pela partilha.

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  3. Grato pela partilha, Jamile! Sucessu em sua vida!

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  4. Parabéns professora trajetória belíssima

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Editorial - Marcelo Cunha

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