sábado, 26 de setembro de 2020

Cássia Valle

 


Cumplicidade objetiva entre vida e arte

 Em 25   de janeiro de 1991 o Bando de Teatro Olodum entra em cena, pela primeira vez num casarão que pertence à Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, no Centro Histórico de Salvador, o prédio é considerado patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Atualmente abriga também dois museus ligados a UFBA , o MAFRO ( Museu Afro-Brasileiro) e o MAE ( Museu de Arqueologia e Etnologia). O Bando, atravessou três décadas de trabalhos ininterruptos, chegamos em 2020 com um elenco de 18 atores cujo os quais 70 % são o núcleo de 1991 homens e mulheres de diferentes gerações na faixa de 19 a 60 e poucos anos. Todos somos negros, Artistas que administram bem a difícil equação entre teatro e sobrevivência. Alguns, principalmente as mulheres investimos na vida acadêmica, em 1993 ingresso no curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia  após uma colega do bando 1 tecer comentários entusiasmados sobre o curso, sim é através do bando que encontro informações sobre o curso de museologia. A trajetória do bando é peculiar dentro da produção cultural de uma cidade onde cerca de 80% da população é negra. Engajado numa linguagem cênica contemporânea, o grupo é comprometido com um teatro indignado, mas sem perder o humor. Nossas peças mesclam humor e desmascaramento racial, leveza, ironia, diversão, densidade e militância, além de uma cumplicidade  orgânica entre vida e arte. E na busca de expandir possibilidades e caminhos encontro o curso de museologia e mestres que vão me orientar em espaços educativos para além das fronteiras da universidade sobre militância e cumplicidade objetiva entre arte e vida sobre a ótica da museologia.

Enquanto museóloga, tenho como missão ampliar o acesso aos bens culturais, por meio do desenvolvimento de processos museológicos de forma integrada e articulada com as minhas atividades de artista e gestora cultural do Centro de Pesquisa Moinhos Giros de Arte, para a formulação e o desenvolvimento de ações de preservação, de pesquisa e comunicação que estimulem o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e da historicidade local, nas dimensões simbólica e cidadã, fomentando uma cultura  de conhecimento para transformação dos sujeitos envolvidos e da realidade local, garantindo o direito à memória .

Em 23 outubro de 2017, no Festival A Cena Tá Preta,  produzido pelo Bando de Teatro Olodum, estreio na literatura com o livro Calu uma Menina Cheia de Histórias escrito em coautoria com Luciana Palmeira (Museóloga, historiadora, Escritora especialista docência do ensino superior e elaboração de metodologia especifica de educação para o patrimônio) ilustrado por Maria Chantal, designer, estilista e modelo. Todos os seus trabalhos têm a missão de valorizar a autoestima negra a partir do conhecimento da sua própria história. E editado pela Editora Malê

A carga histórica dos responsáveis pela obra literária reforçam a abordagem negroreferenciada pelo viés da positivação na construção do seu discurso que trata de questões voltadas para a identidade, diversidade, ancestralidade, memória, preservação, patrimônio e museu por meio do uso de linguagem acessível às crianças visando a representatividade e o empoderamento. Calu é uma personagem negra, escrito e ilustrado por três mulheres negras. Dessa forma, já nasce com uma missão específica de conectar a discussão sobre questões étnico-raciais para o público infanto-juvenil. 12   dezembro 2017 a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Realiza sua premiação anual e o prêmio de melhor livro infanto-juvenil do ano de 2017 é conquistado por Calu. A nossa participação enquanto autoras negras em eventos literários são instigantes para o debate sobre os campos de criação, circulação, distribuição e mediação dos livros elaborados por escritores e escritoras negros. As feiras e festas contribuem para divulgar as iniciativas para a promoção destas obras, estimular o debate literário, aproximar autores e leitores e facilitar o acesso às obras destes autores, aproximar editores, livreiros, distribuidores, educadores e autores, de forma que a literatura negroreferenciada chega aos leitores potenciais. Calu anuncia que representatividade importa. A história é retroalimentada pela magia com que conquista os seus leitores e vai ganhando novos formatos, o bloquinho de poemas e Canções da Calu e o Sarauzinho da Calu; o Sarauzinho da Calu inaugura a minha imersão no universo da dramaturgia e direção teatral consequência das investigações de processos artísticos sobre teatro, literatura , representatividade, tradição e memória para o teatro infantojuvenil. Suas congruências e a transformação dessas pesquisas em partituras cênicas sintonizadas com a valorização das raízes do universo Afro-diaspórico resultaram na criação de um projeto cênico que com ares de representatividade e afeto. De forma lúdica, criativa e transformadora, retrata a transmissão de conhecimento através da oralidade, como contação de histórias, poemas e canções infantis compostas especialmente para o espetáculo pelo diretor musical Cell Dantas (ator e musico do Bando de Teatro Olodum).

O Sarauzinho utiliza a ferramenta da poesia, música e literatura infanto-juvenil para falar de identidade, representatividade e empoderamento. As memórias dos leitores, inspiradas pela narrativa de Calu, são registradas e contadas no bloquinho complementando e recriando esse universo carregado de símbolos da cultura afro diaspórico.

Nesse percurso aqui apresentado estão lembranças; soma-se também conteúdo e percepções surgidos a partir do estudo das fontes teóricas que alicerçaram a minha trajetória profissional no teatro, na museologia, arte-educação e literatura. Junto a tudo, os imprescindíveis bloquinhos de anotações foram revistos. Foram assim resgatadas histórias e referencias quase esquecidas, que revelam o itinerário de um processo de construção de cumplicidade objetiva  entre a vida, o teatro, a museologia e a literatura. Resultado do contato entre teoria e pratica, no meu fazer profissional porque as coisas que a gente faz, conhece ou sabe, são o produto de uma complexidade de influências que se misturam. Transformam-se e participam de nossas vidas.

CÁSSIA VALLE, Atriz, gestora cultural, Museóloga, historiadora, psicopedagoga, escritora, especialista em Arte e Patrimônio Cultural (FSBB) Faculdade São Bento da Bahia e elaboração de metodologia especifica de educação para o patrimônio.


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