Cumplicidade objetiva
entre vida e arte
Em 25 de janeiro de 1991 o Bando de Teatro Olodum
entra em cena, pela primeira vez num casarão que pertence à Faculdade de
Medicina da Universidade Federal da Bahia, no Centro Histórico de Salvador, o
prédio é considerado patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO (Organização
das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura). Atualmente abriga também
dois museus ligados a UFBA , o MAFRO ( Museu Afro-Brasileiro) e o MAE ( Museu
de Arqueologia e Etnologia). O Bando, atravessou três décadas de trabalhos
ininterruptos, chegamos em 2020 com um elenco de 18 atores cujo os quais 70 %
são o núcleo de 1991 homens e mulheres de diferentes gerações na faixa de 19 a
60 e poucos anos. Todos somos negros, Artistas que administram bem a difícil
equação entre teatro e sobrevivência. Alguns, principalmente as mulheres
investimos na vida acadêmica, em 1993 ingresso no curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia após uma
colega do bando 1 tecer comentários entusiasmados sobre o curso, sim é através
do bando que encontro informações sobre o curso de museologia. A trajetória
do bando é peculiar dentro da produção cultural de uma cidade onde cerca de 80%
da população é negra. Engajado numa linguagem cênica contemporânea, o grupo é
comprometido com um teatro indignado, mas sem perder o humor. Nossas peças
mesclam humor e desmascaramento racial, leveza, ironia, diversão, densidade e
militância, além de uma cumplicidade orgânica entre vida e arte. E na busca de expandir
possibilidades e caminhos encontro o curso de museologia e mestres que vão me
orientar em espaços educativos para além das fronteiras da universidade sobre
militância e cumplicidade objetiva entre arte e vida sobre a ótica da museologia.
Enquanto
museóloga, tenho como missão ampliar o acesso aos bens
culturais, por meio do desenvolvimento de processos museológicos de forma
integrada e articulada com as minhas atividades de artista e gestora cultural
do Centro de Pesquisa Moinhos Giros de
Arte, para a formulação e o desenvolvimento de ações de preservação, de
pesquisa e comunicação que estimulem o reconhecimento e a valorização da
diversidade cultural e da historicidade local, nas dimensões simbólica e
cidadã, fomentando uma cultura de
conhecimento para transformação dos sujeitos envolvidos e da realidade local,
garantindo o direito à memória .
Em
23 outubro de 2017, no Festival A Cena Tá Preta, produzido pelo Bando de Teatro Olodum, estreio
na literatura com o livro Calu uma Menina Cheia de Histórias escrito em coautoria com Luciana Palmeira (Museóloga, historiadora, Escritora especialista docência do ensino superior e elaboração
de metodologia especifica de educação para o patrimônio) ilustrado por Maria Chantal, designer, estilista e modelo. Todos os
seus trabalhos têm a missão de valorizar a autoestima negra a partir do
conhecimento da sua própria história. E editado pela Editora Malê
A
carga histórica dos responsáveis pela obra literária reforçam a abordagem negroreferenciada pelo
viés da positivação na construção do seu discurso que trata de questões
voltadas para a identidade, diversidade, ancestralidade, memória, preservação,
patrimônio e museu por meio do uso de linguagem acessível às crianças visando a
representatividade e o empoderamento. Calu é uma personagem negra, escrito e
ilustrado por três mulheres negras. Dessa forma, já nasce com uma missão
específica de conectar a discussão sobre questões étnico-raciais para o público
infanto-juvenil. 12 dezembro 2017 a
Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Realiza sua premiação anual e
o prêmio de melhor livro infanto-juvenil do ano de 2017 é conquistado por
Calu. A nossa participação enquanto autoras
negras em eventos literários são instigantes para o
debate sobre os campos de criação, circulação, distribuição e mediação dos
livros elaborados por escritores e escritoras negros. As feiras e festas
contribuem para divulgar as iniciativas para a promoção destas obras, estimular
o debate literário, aproximar autores e leitores e facilitar o acesso às obras
destes autores, aproximar editores, livreiros, distribuidores, educadores e
autores, de forma que a literatura negroreferenciada chega aos leitores
potenciais. Calu anuncia que
representatividade importa. A história é retroalimentada pela magia com que
conquista os seus leitores e vai ganhando novos formatos, o bloquinho de poemas
e Canções da Calu e o Sarauzinho da Calu; o Sarauzinho da Calu inaugura a minha imersão no universo da
dramaturgia e direção teatral consequência das investigações de processos artísticos sobre teatro,
literatura , representatividade, tradição e memória para o teatro infantojuvenil. Suas congruências e a
transformação dessas pesquisas em partituras cênicas sintonizadas com a valorização das raízes do
universo Afro-diaspórico resultaram na criação de um projeto cênico que com ares de representatividade e afeto. De
forma lúdica, criativa e transformadora, retrata a transmissão de conhecimento
através da oralidade, como contação de histórias, poemas e canções infantis
compostas especialmente para o espetáculo pelo diretor musical Cell Dantas (ator e musico do Bando de Teatro Olodum).
O
Sarauzinho utiliza a ferramenta da poesia, música e
literatura infanto-juvenil para falar de identidade, representatividade e
empoderamento. As memórias dos leitores, inspiradas pela narrativa de Calu, são
registradas e contadas no bloquinho complementando e recriando esse universo
carregado de símbolos da cultura afro diaspórico.
Nesse
percurso aqui apresentado estão lembranças; soma-se também conteúdo e
percepções surgidos a partir do estudo das fontes teóricas que alicerçaram
a minha trajetória profissional no teatro, na museologia, arte-educação e literatura.
Junto a tudo, os imprescindíveis bloquinhos de anotações foram revistos. Foram
assim resgatadas histórias e referencias quase esquecidas, que revelam o itinerário de um processo de construção de
cumplicidade objetiva entre a vida, o teatro, a museologia e a literatura. Resultado do contato entre teoria e pratica, no meu fazer profissional porque
as coisas que a gente faz, conhece ou sabe, são o produto de uma complexidade de influências que se
misturam. Transformam-se e participam de nossas vidas.
CÁSSIA VALLE, Atriz, gestora cultural, Museóloga, historiadora, psicopedagoga, escritora, especialista em Arte e Patrimônio Cultural (FSBB) Faculdade São Bento da Bahia e elaboração de metodologia especifica de educação para o patrimônio.
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