sábado, 26 de setembro de 2020

Luzia Gomes Ferreira



RETRATOS DE MIM

sou o perfume do jasmim... sou a delicadeza da violeta... sou o espinho da rosa... sou cores... sou sons... sou ritmos... sou paisagens... sou geografias... sou histórias... sou sombras... sou enredos... sou travessia atlântica ... sou ventania em calmaria ... sou borboleta em pausa... sou onça alçando vôo... sou docente... sou discente ... sou indecente... sou alegria... sou tristeza... sou medo... sou doçura... sou rudez... sou vazia... sou plena... sou existência... sou desistência... sou intensidade... sou passionalidade... sou amorosa... sou odiosa... sou o desavesso em avesso... sou vida... sou morte... sou uma menina baiana do mundo... sou água corrente entre rochas rasgadas... sou carinho em excesso e dureza acertada... sou poeta... sou poesia... sou luz...sou luzia...

    Nasci e cresci no Recôncavo Baiano, atravessando a ponte sob o Rio Paraguaçu, transitando entre São Félix e Cachoeira, ouvindo reggae, samba de roda, black music estadunidense e cantigas de Candomblé no Terreiro Ilê Axé Ogunjá, frequentado pela minha avó Helena de Jesus e pela minha mãe Raquel de Jesus Gomes. Desde lá, acredito que os movimentos dos Orixás e das águas, fez brotar em mim o intenso desejo de me movimentar pelo mundo para conhecer e viver em outras terras não minhas, mas nas quais enraízo-me. Porque para mim, não existe quaisquer barreiras físicas quando olho para a terra do alto.

    Desloquei-me para capital baiana em 2003, onde cursei Graduação em Museologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA) até 2008. Fui aprendiz de pesquisadora, com bolsa de iniciação científica, sob a orientação da mestra Prof.ª Dr.ª Joseania Miranda Freitas, no Museu Afro-Brasileiro (MAFRO/UFBA). O MAFRO foi a minha casa de formação na pesquisa e pertence as minhas redes de afetos, por isso, sempre o visito quando estou na Bahia. Descolonizei o meu olhar para os patrimônios e as cidades através dos ensinamentos da outra mestra, Prof.ª Dr.ª Lysie Reis. Compreendi que os bens patrimoniais, as ruas, os bairros, as vielas, as estradas, só existem com sujeitas e sujeitos. Como tudo na vida tem um ponto seguinte, encerrei o ciclo de morada em Salvador e migrei para o Sudeste em 2008.

    Cheguei na cidade de São Paulo - SP, com a minha mala rosa, tamanho G, para atuar como museóloga no Organização Social-POIESIS. O primeiro trabalho a ser desenvolvido como recém-formada em Museologia, foi a elaboração do Plano Museológico do Museu Casa Guilherme de Almeida. Momento de aplicação dos conhecimentos museológicos adquiridos na graduação, mas também de construir novas aprendizagens e compreender as facetas contraditórias de ser uma profissional de museu. Descobri que na cidade cinza brotam flores delicadas no asfalto. São Paulo para mim, é o charme de encantos, com durezas nos cantos.

       No início de 2009, recebi um e-mail da mestra Prof.ª Dr.ª Joseania Miranda Freitas, informando-me do concurso aberto para docente do curso de Bacharelado em Museologia, na Universidade Federal do Pará (UFPA) e, o edital exigia apenas a graduação na área museológica. Apesar das incertezas, encarei o desafio de prestar a seleção e contei, como sempre, com o apoio acadêmico, material e afetuoso da Prof.ª Dr.ª Joseania Miranda Freitas. Em maio de 2009, entrei no avião e voei para a Amazônia Brasileira. Mirando de cima, saltou aos meus olhos as águas barrentas da Baía do Guajará. Realizei o concurso e passei. Em julho do mesmo ano, mais um novo ciclo estava aberto: o de morar e atuar na docência universitária em Belém do Pará. De acordo com bell hooks:

A academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula, com todas as suas limitações, continua sendo um ambiente de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática de liberdade. (hooks, 2013, p. 273).[1]

Acredito na sala de aula, em tempos pandêmicos, posso falar em tela de aula, como esse local de possibilidades da transformação transgressora, conforme nos apresenta bell hooks. A academia brasileira, ainda não está descolonizada e a crítica deve ser feita, mas o exercício da docência acende em mim a chama do verbo esperançar.

Com os pés fincados na Belém das águas e mangueiras, dei prosseguimento a minha formação acadêmica. Cursei o mestrado em Antropologia Social de 2010 a 2012 sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Marcia Bezerra, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFPA). Em 2014, surgiu mais um desafio acadêmico e de vida: mudar para Lisboa – Portugal e fazer o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Museologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT). Cruzei o atlântico de avião e não num tumbeiro, na travessia pensava: - não acredito que estou indo morar em outro país! Essa viagem, foi algo inusitado para mim, pois, até aquele momento nunca tinha saído do Brasil. Nessa nova jornada de estudos, tive a orientação, parceria, cumplicidade e afeto do Prof. Dr. Marcelo Cunha.

Morei ininterruptamente em Lisboa no período de novembro de 2014 a março de 2018. Três coisas fizeram-me amar a cidade de águas Tejas: a luz, o Rio Tejo e os encontros. E, o maior encontro ofertado-me por Lisboa, foi comigo mesma, através da poesia. No lado de lá do atlântico renasci poeta, após pisar em vários caquinhos miúdos de vidros espalhados pelas minhas emoções. Em alguns momentos meu corpo sangrou de dor, minhas forças minaram, quase desconjuguei o verbo esperançar. Mas a poesia me deu a mão, embalou-me em seu colo de imprecisão, conheceu-me por dentro e soprou no meu ouvido, a palavra: SEGUE! Criei filmes, fiz ensaios fotográficos, lancei um livro de poemas, escrevi e defendi a tese, e selei de uma vez por todas, a minha história de amor com Maíra Zenun, a minha laotong.

Em 2018 retornei para o Brasil, reassumi as minhas funções docentes. Reencontrei-me com a sala de aula, o meu espaço de amor, luta e transformação coletiva. Atualmente coordeno os Projetos Xirê da Leitura: Mulheres Negras Grafando Memórias em Letras de Poesia (Extensão) e Memórias que vêm das palavras: Olhares Museológicos para as Literaturas de Mulheres Negras (Pesquisa). Através desses projetos, procuro estreitar os diálogos entre Museologia e Escritas Literárias de Mulheres Negras, por acreditar nessas produções artísticas como lugares de enunciação, possibilitando assim, a descolonização do olhar, do ler, do escrever e do escutar, que contribuem para a construção de processos de musealização antirracistas e antissexistas.

Pauso esse texto, lembrando que neste ano de 2020, os museus fecharam as suas portas por conta da pandemia do novo coronavírus que assola o mundo, causando tantas perdas de vidas humanas. E no Brasil, o contexto pandêmico mais uma vez revelou que a carne mais adoecida e morta, foi e continua sendo “a carne negra”. Faço votos que o MAFRO, tenha vida longa e siga propondo contar novas histórias, ofertando escuta aos diversos segmentos sociais da sociedade brasileira. Faço votos que o MAFRO possa desatar os nós desafiadores colocados pelas tramas das memórias no tempo de hoje, e contribua cada vez mais, para a criação dos laços de amor, encantos e emancipação do povo negro.


Luzia Gomes Ferreira 

(Museologia/FAV/ICA/UFPA)



[1]hooks, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. 2013.

 

Um comentário:

  1. Lindo e inspirador. Acendeu em mim esta vontade, este desejo ardente de também conjugar o verbo esperançar num tempo, numa gramática, Sakofa. Grato. Parabéns à MAFRO.

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