sábado, 26 de setembro de 2020

Jusciele Oliveira



 

Entre lugares e espaços de memórias e culturas: primeiras reflexões e construção de uma trajetória acadêmica

     Entre América, África e Europa. Entre Brasil, Guiné-Bissau e Portugal. Entre Euclides da Cunha, Salvador, Lisboa, Bissau e Faro. Entre lugares de culturas e lugares de memórias. Entre trânsitos e trocas minha carreira acadêmica se constituiu e se construiu. No entanto, não posso esquecer que “Eu venho dos trópicos”. Paráfrase do título da escultura “N’oublie pas que je viens des tropiques” (1945) da artista visual mineira Maria de Lourdes Alves Martins (1894-1973), que também é título do documentário sobre a vida da artista lançado em 2017; ou ainda gostaria de lembrar-vos que que eu sou baiana e a “Bahia já me deu régua e compasso”, como diria Gilberto Gil, na letra da música “Aquele abraço”, já que nasci e vivi até os 18 anos num município do Nordeste Baiano, chamada Euclides da Cunha. Uma cidade marcada pela seca e pelas histórias orais e a memória sobre a Guerra de Canudos e o Cangaço. Filha de um vaqueiro (não-negro e não-branco, filho de descendente de portugueses) e de uma professora municipal (negra, filha de um descendente de negro e de uma índia Caimbé e holandês), que me ensinaram a compartilhar e entender a importância de viver em família e em coletividade, sempre respeitando as diferenças e as características individuais de cada um, visto que carrego no meu corpo traços brancos, negros e índios. E rememorando e ampliando Frantz Fanon, um corpo de mulher que sempre questiona.

Com isso quero dizer que a minha brasilidade e a minha baianidade, minhas identidades têm relação com as escolhas por trabalhar com as diferenças e em diferença, com teorias e críticas dos diversos continentes, procurando não rejeitar sumariamente as indicações teóricas, críticas, políticas, históricas ou artísticas, mesmo que por vezes não se relacionem diretamente com os objetos e os sujeitos das pesquisas; e acima de tudo evitando se render as comodidades e aos fascínios do Ocidente com sua sede de hegemonias, mas que me fizeram pensar, refletir e fazem parte da minha trajetória acadêmica e de vida. Ou ainda como narra a escritora senegalesa Fatou Diome, “Entre querer e poder, entre pensar e tentar, entre desejar e ousar, entre arriscar e ganhar, raros são os humanos que afrontam as correntes até à margem solarenta das aspirações satisfeitas. Cada um faz o que pode” (2003, p. 69)[1]. E assim construí (e construo) o que pude nesses mais de 10 anos de pesquisa nas áreas das culturas, dos cinemas e das literaturas bissau-guineenses e africanas.

Entre o interesse inicial pela literatura bissau-guineense, na graduação em Letras Vernáculas (UFBA, 2002-2006) e a pesquisa de doutorado sobre o cinema autoral de Flora Gomes, sucederam-se projetos nos campos da literatura comparada e dos estudos culturais, envolvendo as duas áreas. O cinema bissau-guineense chegou até mim em função de referências da orientadora (Maria de Fátima Maia Ribeiro) e do apoio de especialistas, que disponibilizaram cópia dos filmes, como o professor Mohamed Bamba e Amaranta César, suscitando de imediato continuada pesquisa em internet e livros, abrangendo cinemas africanos na contemporaneidade. A pesquisa de Mestrado (Literatura e Cultura-UFBA, 2011-2013) sobre o filme Nha fala (Minha fala, 2002) ocupou-se das representações construídas para a África e para a Guiné-Bissau, com foco nas questões nacionais demandadas na contemporaneidade, e transformadas em matéria da indústria cultural do cinema, que extrapola as fronteiras bissau-guineenses e africanas, seja através da temática de trânsitos físicos e culturais explorada pelo cineasta, seja pela política de agenciamento das instâncias de produção cinematográfica. No que concerne ao título do trabalho: “Tempos de paz e guerra: dilemas da contemporaneidade no filme Nha fala, de Flora Gomes” está relacionado com a situação política da Guiné-Bissau, que na época da gravação do filme era de guerra política, entretanto o cineasta retrata um momento de paz, em vista disso são tempos de “paz e guerra”, não “guerra e paz”.

Atravessada por dilemas, trânsitos e trocas, a primeira dissertação sobre cinemas africanos da UFBA buscou afinar-se com o seu objeto em termos linguísticos convocando para o resumo as três línguas presentes em Nha fala: português, crioulo e francês. Por sua vez, a escrita do texto foi pautada na importância acadêmica, cultural e política da pesquisa, bem como na atualidade das questões a respeito da cultura e do cinema bissau-guineenses, suscitando a interdisciplinaridade com estudos críticos nos campos do cinema, da história, da sociologia, da antropologia e da arte. Trata-se de leitura não exaustiva e fechada em si mesma, mas uma leitura viável, possível e, acima de tudo, atenta ao objeto.

A investigação de doutorado - “Precisamos vestirmo-nos com a luz negra”: uma análise autoral nos cinemas africanos - o caso Flora Gomes (CIAC-UALG-Portugal, CAPES-Brasil, 2014-2018) - foi o resultado de uma pesquisa na área dos estudos cinematográficos com ênfase nos cinemas africanos, em que se parte da concepção de autoria e da teoria dos autores, especificamente em torno da obra de ficção do cineasta Flora Gomes, refletindo sobre a própria natureza do cinema como uma área “transartística”, transdisciplinar e transcultural que, na interação com outras artes (fotografia, arquitetura, música, teatro, dança) e disciplinas (antropologia, história, sociologia, educação, psicanálise), revela-se mais produtiva. E mais uma vez, atravessada por deslocamentos, trânsitos e trocas, a tese foi construída. Afinal, é na contemporaneidade que o cineasta Flora Gomes exerce o direito da liberdade criadora, nos seus filmes, que não aleatoriamente são dedicados aos seus amigos, as crianças do seu país, à memória de Amílcar Cabral e aqueles a quem não foram dado voz, e que apresentam o imaginário, a visão de mundo africana, por meio do poder da palavra, da imagem e da transgressão dos limites, das relações familiares, do local e do global, das relações entre vida e morte, por meio das cerimônias fúnebres, viagens iniciáticas e ritos de renascimentos como metáforas para a vida social, bem como as relações entre a modernidade e tradições, em termos de complementaridade, enfocando como é possível, ao mesmo tempo, “ser iguais e diferentes”, consciente, o realizador, de que “entre os países do sul e do norte, entre os países quentes e frios, nada é simples”, mas é preciso atrever-se, “ousar”, e dar um “bye-bye ao século XX”.



[1] DIOME, Fatou. Kétala. Lisboa: Europress, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Editorial - Marcelo Cunha

  Este número Zero materializa um desejo que não é de hoje, nem decorrente exclusivamente desse momento,   no qual estamos, compulsoriamen...