sábado, 26 de setembro de 2020

Maíra Zenun - Autorretrato

 

...mar e íra...

“A pessoa explosiva, tipo mar da Bahia, fica transparente em dia de sol, e turva em dia de chuva... Serena, serenata, ser a vida... mas com tempestade, com desejo e saudade... de quem já foi, é... mar e ira... A pessoa é, como todas as outras... como a outra que ama... a pessoa é: possibilidade... e seja lá o que isso quer dizer…”. Um dia me descrevi assim. E já estudava cinema, e já queria muito aprender fotografia. Depois, passei a ver-me como um terreno baldio. Mas, ocupei o espaço que havia… me mudei, debandei, demandei um bocado da vida. Fiz reviravolta e moinho. Tropeçando, levantando. Hoje, falo pouco de mim (mentira), mas falo muito do que a mim fizeram - tempo, espaço, temporalidade, territorialidade. Para alguns, devaneio. Para outres, sou como uma montanha russa, cercada de nuvens porosas por todos os lados. Enfim, sou um pouco assim: mar e ira. Sedenta. E às vezes, serenata. Muito severa, mas pouco abstrata. Embora, há quem desdiga… e reclame das minhas brisa-das. Mas, se sou, o que sou, para além de tudo isso, é o que está em mim inscrito: ser-tão, ser uma: mulher negra, artista pensante imigrante, mãe; companheira; uma brasileira; fora de casa, dentro de casa; em trânsito ainda. É que eu fui parida no Rio de Janeiro, fui criada em Petrópolis, depois cresci em Brasília-Tagua-Samambaia e, desde 2016, vivo e vivencio a Linha de Sintra, na Amadora, em Portugal: tudo Planeta Terra total. Por isso… odeio fronteira, mas sou mesmo é filha dela. Destino. No mais, tenho formação profissional (formal, informal e continuada) nos campos das Ciências Sociais e das Artes Visuais - fílmicas, performáticas e fotográficas. Todas elas - ciências e artes -, articuladas através de estratégias somadas e concomitantes de atuação e escrita político-poética. Mas, é na base dos afetos, que me descarrilham e desaceleram, afetando tudo, que sigo em diálogo com as minhas próprias - e com as de outres - especificidades, insalubridades e conhecimentos periféricos; mantendo assim um trabalho já extenso, porém, pequeno, em imagens e escrivivências; sobre arte, educação, cinema e ciência. Sobre televisão, cinema brasileiro, negro, teoria decolonial, do conhecimento e metodologias antirracistas. Enfim. Tenho por ai, pelo mundo, alguma coisa já exposta, tanto em publicações, quanto em coleções privadas e galerias de arte. Aqui e acolá. E ainda dois blogs - flores de maio (2007-2017) e … dicionário bantu em cartas de amor… (2014) -, estacionados no espaço; onde colho, colhi e planto pétalas, onde deságuo e fico em gotas. Muitas delas. Enfim… enfim, de novo. É que eu desenvolvo, como hoje, como agora, madrugada adentro, certa produção acadêmica. Tenho até um lattes, muitas páginas nele… a verdade é que tenho mesmo é muita estrada, sabe? Ou, talvez, não tenha ainda andado quase nada. Nem na Sociologia, que me enquadra, nem nas artes, que me distorcem, que me torcem por dentro, a todo momento. O negócio é que na poesia e nas imagens é que eu me acho, mesmo quando eu me perco. Eu já sou até doutora (2019), mas antes virei mestre (2007). Mas, a bem da verdade, te digo, é de muitas encruzilhadas que construo o meu percurso. É assim que vou seguindo e parindo. Como em 2014, por exemplo, quando foi selecionada para o II Núcleo de Produção em Fotografia Contemporânea, ateliê profissionalizante em fine art, que culminou na exposição “Abalos Sísmicos e Outras Movimentações Tectônicas”. Ao mesmo tempo que ia sendo fotógrafa, eu também ia indo pelo terreno arenoso da academia. Tanto que, participei, entre 2010 e 2015, como investigadora e produtora de imagens do TRANSE/UnB, e desde 2014 colaboro com o FICINE – Fórum Itinerante de Cinema Negro. Ambos grupos de pesquisa vinculados ao CNPQ. Agora, em 2020, fui parar no Tocantins, e me tornei pesquisadora colaboradora do grupo de pesquisa "Memória, Arte e Alteridade", da UFT. Sou também uma das co-fundadoras da Nêga Filmes, coletivo cooperativista fundado em 2015, em Lisboa, que desenvolve projetos transcontinentais nas áreas de cinema, poesia, educação e fotografia. E desde 2016, tenho coordenado e feito a curadoria de diversos ciclos de cinema, em especial a "Mostra Internacional de Cinema na Cova - África e suas Diásporas", que acontece na Cova da Moura, da Amadora, em Portugal. Em 2017, fui uma das duas artistas selecionadas pelo prêmio Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura, para uma residência no Lavadouro Público de Carnide. Disto, que foi muito forte e divino, nasceu o ensaio fotográfico “As Marcas Somos Nós” publicado na Revista Eletrônica BUALA. Em 2018, muitas coisas: parimos a Ashanti; ajudei a fundar o INMUNE; apresentei algumas vezes a performance "a terra tremeu dentro de mim e eu fiquei sem casa" - trabalho visceral que já tem também um rastrinho. Em 2019, foram muitas mais tantas, tantas outras coisas: mediei alguns workshops, como o "Cinema de/para/com Mulheres Negras" no II Festival Feminista de Lisboa - isso porque a educação sempre andou comigo, venho percorrendo esse trajeto desde muito tempo, desde o cerrado, desde o Rio; estive no Festival TODOS como fotógrafa convidada e desenvolvi o ensaio poético-imagético "caminhos percorridos com carinho", fruto de um trabalho criado especialmente para a ocasião. Fui neste mesmo ano, ainda, ao Porto/Portugal, para apresentar o ciclo “Black Women and New Black Cinema”, cuja seleção de filmes é de minha curadoria. Agora em 2020, em plena pandemia, ministrei um foto-lab na Serra das Minas, na mesma Amadora, com uma gurizada maravilha. Mas, então, é isso. Artigos na SOCINE, no catálogo Clássicos Africanos - A primeira geração de cineastas na África do Oeste, realizada na CAIXA Cultural Rio de Janeiro… tantos outros… poucos... Um acúmulo de experiências mais que especiais. Mais que lindas. E por ser poeta, ainda, desde a infância, fui me-sendo, fui me saindo: às vezes sã, às vezes, caduca. Mas, sempre em movimento, sempre sempre sempre, ainda… tudo junto, misturado, e mais nada.



Um comentário:

  1. Que percurso! Quão belos estes horizontes que foste alcançando!!! Cheios de vidas, cheios de gentes, cheios de poesia...Não há generosidade maior do que partilhas como estas, que nos nutrem, que nos revitalizam, que nos fazem ganhar o gosto pelos caminhos, pelos desvios, pelas rotas, pelos trilhos. Obrigado Maíra Zénun <3

    ResponderExcluir

Editorial - Marcelo Cunha

  Este número Zero materializa um desejo que não é de hoje, nem decorrente exclusivamente desse momento,   no qual estamos, compulsoriamen...