sábado, 26 de setembro de 2020

Nelma Barbosa

 


Ingressei em Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia, em 1997. Fui a primeira de minha família a ter ensino superior. Sou de uma linhagem negro-mestiça de trabalhadores e trabalhadoras do sul baiano, que se desenvolveu à sombra de pés de cacau cultivados nas margens das águas de rios como o Una, Acaraí, Cachoeira, Almada, Gongogi e de Contas. Meu imaginário infantil se formou ao som de atabaques e vozes que contavam histórias de cura e magia dos orixás e dos feitos de benzedeiras, curandeiros, lavradores e mulheres que resistiram, a seu modo, defendendo as heranças ancestrais na região.

De lá eu saí. E conheci outro mundo de heróis: os sindicalistas do ABC paulista e das Comunidades Eclesiais de Base. Novas paisagens tomaram meus olhos: cavalarias de polícia, operários algemados em plena passeata, comícios em porta de fábrica etc. Sim, testemunhei tudo isso ainda criança porque havia indústrias metalúrgicas no bairro em que morava.

De volta à Bahia, a vivência na Residência Universitária da UFBA, a militância no Partido dos Trabalhadores e no movimento estudantil me provocavam na dimensão das culturas, identidades e do fazer política no cotidiano. Então, me engajei no Programa UFBA em Campo. Fundamentado na construção solidária de conhecimento, o programa de extensão se constituía de estudantes, professores e lideranças comunitárias, voltadas para o desenvolvimento (interdisciplinar) de ações em contextos comunitários. Minha primeira experiência foi no Centro Histórico de Salvador. Conheci artistas plásticos negros, que viviam em um universo paralelo ao mundo oficial da arte. Agindo nos limites de um projeto universitário, concluímos a atividade refletindo sobre a desconstrução da neutralidade científica, do conhecimento universal e as diversidades de sujeitos viventes no bairro “cartão postal da democracia racial baiana”. E eu, desejando saber mais sobre da produção visual dos afro-brasileiros na Bahia.

Na extensão da UFBA, participei de outra atividade, o Projeto: Paraguaçu – convivência comunidade e universidade, que durou cerca de 04 anos no distrito rural de Santiago de Iguape (Cachoeira-BA). Foi por intermédio desse projeto que a Fundação Cultural Palmares se voltou para a localidade e iniciou o processo de reconhecimento das comunidades remanescentes quilombolas da região.

As reflexões daquele contexto me levaram a problematizar a formação do artista visual contemporâneo e a diversidade, cursando o Diplôme d´Etudes Approfondies en Sciences de l´Education na Universidade Lyon 2, na França.  Ao retornar, iniciei minha carreira profissional como docente universitária na rede particular.

Nos idos de 2006, segui para o mestrado em Cultura e Sociedade da UFBA intrigada com as estratégias comunitárias de defesa de um monumento natural e histórico, a Pedra do Quilombo Buraco do Tatu ou Pedra de Xangô, em Cajazeiras, periferia de Salvador.

Aproveitei essa experiência atuando no Instituto Anísio Teixeira, órgão da Secretaria da Educação da Bahia, voltado para a formação e aperfeiçoamento de seus profissionais. Coordenei um pioneiro programa de formação para a educação das relações étnico-raciais no estado. Naquele contexto, em 2008, apoiamos a vinda de Angela Davis, Enrique Dussel, Ramon Grosfoguel e outros intelectuais desse campo à Bahia, promovendo conferências ou cursos transmitidos para todo o interior do estado através da rede de videoconferência e de Educação à Distância, mantida pelo governo estadual. Em três anos, formamos cerca de quatro mil educadores para atendimento das leis 10.639/03 e 11.645/08. Essas leis federais exigem o ensino da História da África e dos povos ameríndios, das Culturas afro-brasileira e indígenas em todas as escolas do país. Em 2010, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão ligado à Presidência da República, premiou o referido conjunto de ações, concedendo ao governo da Bahia o Selo Educação Para as Relações Etnicorraciais, honraria destinada às principais iniciativas brasileiras pela igualdade racial no campo da educação. Nosso estado foi o primeiro a ter esse tipo de reconhecimento no país.

No mesmo ano, me tornei docente do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano), Campus Valença. Logo depois, cursei o doutorado em Estudos Étnicos e Africanos na UFBA, focando a arte afro-brasileira contemporânea.

No IF Baiano, colaborei com a criação do seu Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas. Atualmente, desenvolvo pesquisas e projetos de extensão voltados para as Artes visuais, Identidade e Cultura Afro-brasileira, Educação, Ilustração Científica e Território. Coordeno também o curso de especialização em Relações Étnico-Raciais e Cultura Afro-brasileira na Educação (REAFRO), voltado para educadores do Baixo Sul, e um grupo de pesquisa pelo CNPq, o NEABI do IF Baiano. Nessas novas trilhas investigativas, me reencontro nos processos que dão visualidade e visibilidade aos sujeitos, lugares e práticas cotidianas ancestrais do sul da Bahia.


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